O primeiro pogrom do General Petliúra começou logo após a sua chegada a Jitomir, à frente de seu exército de cossacos, tão belos no palco, mas tão ferozes na vida real. A violência contra os judeus foi inaudita. A matança foi geral. Eram oito pessoas na sala da residência da família Bloch quando os cossacos surgiram, desembainhando seus sabres e exigindo ouro, jóias e objetos de valor como resgate da vida daqueles que se encontravam naquela sala. A mãe de Adolpho tinha apenas 45 anos de idade naquela ocasião e já estava preparada para a situação, entregando aos cossacos um porta-jóias. Ninguém foi massacrado naquele instante e local, onde o pequeno Adolpho quase não podia respirar de tanto ódio. E pensava: "se eu pudesse fazer faltar o ar, por um minuto que fosse, os cossacos morreriam e pagariam caro a violência que cometiam".
Daquele episódio, surgia naquele momento uma idéia que acompanhou
Adolpho Bloch desde aquele dia sofrido: o ar representa Deus. Está
em toda a parte, é invisível e tem vida. Nos livros religiosos
sempre se diz que Deus é onipresente. E o ar também. Naquela
ocasião, Adolpho andava lendo uma brochura sobre religião
e nela se dizia que Jesus era judeu. E ele se indagava: "Como é
que os homens de uma religião podiam perseguir a religião
que era de Deus?".
Em Kiev, a família Bloch foram viver em um apartamento na Rua Pushkinskaia, 23, que seu pai havia comprado em 1914. E ali tiveram notícias de três fatos históricos: a paz em separado entre a Rússia e a Alemanha, a independência da Finlândia e a declaração de Lord Balfour, com a pormessa da Inglaterra de estabelecer um lar judeu na Palestina. Foi também em Kiev que Adolpho Bloch assistiu à muitas revoluções e a mais de três pogroms. Em 1920, acompanhado pelo General Weygand, o marechal polonês Pilsudski entrou na cidade com 700 mil cavalarianos, levando semanas para ocupar a região.
Era véspera de Pessach, a páscoa judaica. As irmãs de Adolpho foram requisitadas para limpar o Bibikovsky Bulvár. Ele as acompanhava, ajudava pouco e estavam conformados com a situação. Foram até Duma (parlamento local) na Rua Krestiátik (a rua principal da cidade) e viram tremular a bandeira vermelha do novo regime que se instalava. Naquele ano, houve vinte revoluções, onde os Blochs ficaram habituados a ir à Duma para verificar qual a bandeira que estava no poder. Cada bandeira correspondia a uma nova constituição. Mudava tudo, e sempre para pior. Um sobrinho da mãe de Adolpho, chamado Ióssif, havia chegado da Sibéria. Era matemático e jornalista, trabalhando no jornal do Partido Comunista. Quando saiu um de seus artigos, o governo estava nas mãos do General Denikin, do Exército Branco, e ele pagou com a vida por suas idéias.
E assim, os Blochs iam dormir, depois de tomar chá feito de cascas de laranja. Eram jovens, suportando tudo aquilo com naturalidade, pois achavam que a vida era assim mesmo. Com a desapropriação de sua litotipografia e dos quiosques onde colocavam affiches, a vida se tornou ainda mais difícil.
Um episódio ocorrido com um irmão de Adolpho chamado Arnaldo tornou mais dramática a sua vida. Na grade da oficina da família Bloch, ao nível da calçada, e que dava para o setor onde ficavam as etiquetas de açúcar e balas que ali eram impressas, os dois irmãos improvisaram um trenó, usando as fitas de aço que prendiam os fardos de papel, e assim faziam deslisar o trenó de madeira facilmente na neve bastante concentrada, pois naquela época era inverno. De madrugada, ainda escuro, Adolpho e Arnaldo retiraram quatro ou cinco barras de ferro da grade, e como Adolpho era o mais magro, penetrou na oficina. Muitos pacotes foram pasasdos para o seu irmão, que os arrumava no trenó. Recolocaram as barras de ferro na grade e seguiram até o 4º Bulvár. Lá funcionava uma feira de trocas: trocavam pianos, tapetes, quadros, qualquer coisa por um pouco de batata, pepino, cebola, cenoura ou açúcar.
Quando chegaram em sua casa, no luxuoso apartamento onde as cortinas tinham vindo da Itália e agora estavam reduzidas a farrapos, a festa foi geral. O trenó estava escondido por um dos pedaços da cortina. Um cunhado dos dois irmãos soube da aventura e quis ter uma participação nos lucros. Durante a guerra, ele se tornara perito em jogar o Black Jack. Com a metade das fortunas acumuladas, ele prometia ganhar milhões de rublos, mas a proposta foi recusada.
A situação tornava-se dramática, quando os Blochs foram expulsos do apartamento e foram morar em um quarto do Bibikovsky Bulvár, junto à escola comercial onde Adolpho estudava. Ali viviam onze pessoas contando com ele mesmo. Assim se passaram alguns meses, onde Adolpho assistiu a mais dois progroms. E a sua mãe, uma iídiche mame, sempre dizendo que os tempos iam melhorar. Em meados de 1921, encontraram o seu Lipa, filho de Dr. Uger. A odisséia foi contada, bem como manifestado o desejo de emigrar. O pai da familha tinha um irmão que morava no Brasil, mais precisamento no Estado da Bahia. Ele mandou uma pessoa para orientar os filhos e assim embarcaram em um trem de carga, sentados no piso do vagão. Viajaram sete dias até chegar à estação anterior à de Odessa. Durante a viagem, os Blochs eram fiscalizados de duas em duas horas. Vinha uma patrulha que pediam a eles "os documentos", que eram relógios, pulseiras, brincos ou qualquer outro objeto de valor. Antes de chegarem ao fim da viagem, já não tinham qualquer "documento". A última patrulha que os fiscalizaram não encontrou mais nada. Bella, uma das irmãs de Adolpho, precipitou-se e ofereceu a um dos guardas o livro que estava lendo, um volume de poemas do poeta nacional russo Pushkin. A reação do soldado foi imediata: queria fuzilar Bella. Uma senhora que viajava ao lado de Bella salvou a situação, dando uma jóia ao soldado. Muitos anos depois, Adolpho Bloch descobriu a razão por que o soldado queria matar sua irmã: não se oferecia livro a um analfabeto.
Um impressor da oficina dos Blochs tinha um filho que era maquinista do trem que ia para Bieloie-Tserkvi. Ele se mostrou disposto a levar uma outra irmã de Adolpho, chamada Sabina, até lá a fim de trazer seis sacos de trigo. Tiraram as cortinas italianas do apartamento para fazer os sacos. Sabina sentou-se junto ao maquinista, na locomotiva que era a carvão. O trem apitava a cada dez minutos anunciando a partida, mas não saía do lugar. No fim de seis dias, ela finalmente recebeu a notícia de que o trem não ia partir. Voltou para casa com a cara suja de carvão, sem os sacos que lhe foram roubados e com os rins afetados, pois durante os seis dias ela não podia ir ao banheiro com medo de perder a viagem.
Os Blochs desceram na estação anterior à Odessa e foram em frente, até o rio Dniester, em um local onde havia grandes plantações de milho. E lá acamparam esperando o momento propício para atravessar o rio e atingir a Bessarábia. Em uma noite de luar ouviram cerrado tiroteio. Souberam depois que várias famílias que desejavam atravessar o rio haviam sido fuziladas. Veio um mensageiro que os alertaram do perigo. Deviam esperar uma noite de lua nova para tentar a travessia. Isso levaria muitos dias. A sede era horrível, embora a água estivesse a menos de 200 metros. Bebiam gotas, quando podiam.
Finalmente, atravessaram o rio Dniester em uma noite muito escura. Do outro lado os esperavam carroças de palha de milho. Homens barbados e experimentados, vestidos com camisas ucranianas bordadas no peito e nos pulsos, arrumaram-os na parte da frente das carroças, junto aos cavalos, em grupos de três ou quatro pessoas. Na fronteira, os guardas enfiavam enormes garfos na palha. Adolpho ouvia o barulho do ferro na palha mas estava longe, no outro canto da carroça. E assim chegaram a Dobreven, já na Bessárbia. Sairam felizes, com restos de palha nos cabelos e nas roupas. Entraram em um casebre pequeno, onde o chão era de terra batida. Foi ali que Adolpho conheceu a aramatchka iv joper lhubit lest, flor típica da região. E provaram um prato inesquecível, típico da Romênia: o mameligue (angu de fubá). Consagrou-se como um dos pratos mais deliciosos já comido por Adolpho Bloch, pois para ele representava o prato da liberdade. Ali permaneceram uns dias e depois rumaram para o porto de Galátz. Ficaram em um hotel perto do cais. Adolpho gostava de ver as enormes barricas de arenque que exportavam. Aquele região era muito rica.
Semanas depois, embarcaram em um pequeno navio que atravessou o rio Constança, o mar Negro, o mar de Mármara. Fizeram uma escala em Constantinopla. Era 8 de outubro de 1921. Naquele dia, Adolpho Bloch completava 13 anos e estava preparado para fazer o seu Bar Mitzvah. Saiu do barco e, como falava um pouco de francês, informou-o sobre a sinagoga. Era do outro lado do Bósforo e ele precisava atravessar a ponte, pagando meia piastra de pedágio. Ele não tinha esse dinheiro, mas fora escoteiro na Rússia e conhecia alguns truques. Havia um turco na entrada da ponte chacoalhando seu fez cheio de moedas. Adolpho decidiu correr e o turco não o conseguiu pegar.
Foi à sinagoga. Era dia de semana e havia pouca gente. Falou com o shames (bedel), explicando que estava fazendo 13 anos naquele dia e tinha direito ao seu Bar Mitzvah. Ele o consolou, desejou-lhe felicidades e o abençoou em turco; mas, em compensação, o shames lhe deu trabalho. Adolpho voltou ao navio pela ponte, passando por uma rua onde apreciou lojas de filatelia. Gostou muito de ver selos de todo o mundo. Quando chegou ao porão do navio, onde viviam mais de cem pessoas, encontrou a sua gente. Todos o comprimentaram e foi assim que ele comemorou os seus 13 anos. Mas não pôde deixar de lembrar, naquele dia, o seu tio Jorge, irmão de seu pai. Sempre lhe prometendo que, ao fazer 13 anos, ele o levaria à casa das meninas, na Rua das Maravilhas, 27.
Chegaram finalmente a Nápoles, onde passaram alguns meses, vivendo no cais e nas ruazinhas onde as roupas brancas penduradas parecem bandeiras de paz. Ali conheceu a miséria rica. Mais tarde, conheceria a riqueza miserável. Dois pratos de espaguete bastavam para alimentar a família. Quando via pessoas em restaurantes ou bares comendo enormes pratos, ele não podia imaginar que aquilo algum dia podeira acontecer consigo mesmo.
Em dezembro de 1921, iniciaram a viagem rumo ao Brasil. Foram de trem até Gênova, atravessando quase toda a Itália e passando por Roma. Já eram vistos os cartazes anunciando a era de Mussolini. Em Gênova, embarcaram na terceira classe do Red'Italia. Do Brasil, Adolpho só conhecia a fotografia que havia no consulado brasileiro de Nápoles: era o canal do Mangue, com suas lindas palmeiras e o rio no meio. Aquela imagem o perseguiu durante toda a viagem. Naquela época, o dinheiro tinha valor. As classes (primeira, segunda e terceira) eram bem diferenciadas. Ele via de longe os passageiros de primeira classe, que pareciam viver em um palácio de luxo. Na terceira, a mesa era farta, coletiva, parecendo-se com um piquenique. As suas irmãs, acostumadas a um certo luxo, estranharam o elevador da terceira classe: era o guincho das mercadorias. Mas eram jovens, cheios de esperança e sabiam que o Brasil os daria a oportunidade de emigrar para os Estados Unidos. Esse era o desejo e todos diziam que era mais fácil obter os vistos no Brasil.
Saindo de Gênova, um dia depois chegaram a Barcelona. Todos os passageiros
podiam descer a terra, menos os de terceira classe. De lá, rumaram
para Dancar. Foi a primeira vez que viu negros. Eram crianças simpáticas,
falando francês. Os passageiros jogavam moedinhas na água
e os garotos mergulhavam para apanhá-las, um espetáculo habitual
que fazia parte das distrações da viagem.