Eu já sei que há algo errado assim
que meus pés pousam sobre o solo do Ningenkai. Algo me atinge com
força; algo que não
consigo distinguir a princípio. Não
é um ki, ou aura de alguém; é mais como um pressentimento
no ar... um mau pressentimento.
Aconteceu algo, algo grave. Não tenho
certeza de querer saber o que é, enquanto meus saltos através
das árvores me levam
diretamente em direção à
casa de Kurama.
Como já fiz muitas vezes antes, eu chego
junto à janela ampla de seu quarto, e como de hábito empurro
a janela, para poder
entrar. Minhas sobrancelhas se juntam em confusão.
Ela está fechada.
Não consigo me recordar de quando isto
já aconteceu, antes. É tarde da noite, hora desta raposa
já estar há muito no mundo
dos sonhos. O quarto está completamente
às escuras, não consigo ver nada no interior do recinto,
a não ser sombras
disformes. Eu hesito um pouco antes de bater
levemente na vidraça. A sensação que me atingiu quando
atravessei o portal
entre o Makai e o Ningenkai e a janela fechada
são duas coisas que estão por demais me incomodando, mas
eu me recuso a
entrar em pânico com tanta facilidade;
por quê deveria? Há uma explicação para isto,
tenho certeza.
Porém, não há resposta à
minha batida, e eu insisto, desta vez um pouco mais fortemente. Nada, ainda.
O quarto se encontra
vazio. Finalmente admito para mim mesmo que estive
tentando me enganar desde que cheguei aqui; não senti o you-ki de
Kurama em nenhum lugar desta casa. Ele não
se encontra aqui, definitivamente. Então porquê continuo a
bater na vidraça, que
nem um imbecil, se já sei disso? Eu sacudo
a cabeça.
Apurando meu próprio ki, eu vasculho a
casa inteira em busca da energia dos outros habitantes desta casa, a mãe,
o padrasto
e o irmão menor; também não
há sinal de nenhum deles. Então é isto.
Kurama provavelmente se encontra em algum outro
lugar, com seus familiares humanos; está aí a explicação.
Tudo o que me
resta a fazer é esperar eles voltarem.
Porém, embora eu já esteja recostado
no galho de árvore, aguardando, aquela sensação insistente
não abandona meu íntimo.
Incertezas começam a pertubar minha mente;
a esta hora da noite, onde eles poderiam estar... todos eles?
Não é época de férias
da escola... se assim fosse, estaria perfeitamente explicado: A família
inteira estaria aproveitando as
férias dos dois estudantes para viajar
a algum lugar, ou visitar algum parente... mas também é do
meu conhecimento que,
geralmente quando sua família combina
alguma viagem ou passeio, Kurama sempre dá um jeito de não
se juntar a eles, com
alguma desculpa, e fica em casa. Ele faz isso
para que nós dois possamos ter alguma privacidade na casa convenientemente
vazia, sem a chateação dos seus
familiares por perto. Ele aproveita qualquer oportunidade como esta; é
quando podemos de
fato estar tranqüilamente sozinhos, nestas
ocasiões.
Se sua família estivesse viajando, Kurama
não estaria com eles. Estaria aqui, no quarto, me esperando, um
sorriso lascivo em
seus lábios, uma chama ardente de antecipação
em seus olhos cor de esmeralda...
Eu me remexo no galho, subitamente me sentindo
desconfortável. A sensação não me abandona,
por mais que eu tente pensar
racionalmente, ela continua lá, martelando
meu inconsciente.
Em toda a minha vida, eu nunca fiz a imprudência
de ignorar meus instintos. Estaria a sete palmos de terra se fizesse isso;
é algo
que guia meus passos, algo que dita minha sobrevivência.
E agora, meu instinto está me dizendo que há algo tremendamente
errado em toda esta situação. E
como sempre, não posso me dar ao luxo de ignorar isso por muito
mais tempo.
Eu me ponho de pé no galho, minha decisão
já tomada. Escolhendo uma direção, eu deixo a árvore
onde estivera abrigado,
com saltos rápidos e determinados.
Chego finalmente ao prédio onde mora Yusuke,
me sentindo relutante em revelar a mais alguém assim tão
abertamente minha
preocupação. Mas não há
outro jeito. Yusuke com certeza sabe do paradeiro de Kurama.
Nunca gostei de elevadores. Subo rapidamente as
escadas e me posiciono em frente à porta do apartamento. Sem hesitar
toco
a campainha. Esta berra, acusadora, parecendo
querer acordar a vizinhança inteira. Alguns minutos de silêncio.
Eu insisto, mas
nada. Não há ninguém em
casa.
Meu cenho está novamente franzido. Começo
a considerar a possibilidade de alguma missão de Koenma; mas neste
caso,
porque eu não seria avisado? E além
disso, também há a questão da ausência dos familiares
de Kurama... não há nada se
encaixando aqui.
Eu deixo os arredores do prédio, incerto
do que fazer. Solto um grunhido de desgosto, ao tomar a direção
da casa de
Kuwabara; tudo o que desejo agora é olhar
para a cara imbecil daquele gorila desajeitado, mas a necessidade de saber
o que
está acontecendo me vence outra vez.
Porém a cena se repete; quando chego ao
local, nem preciso bater na porta, pois já vasculhei o local e constatei
que se
encontra vazio. Nenhum humano aqui. E também
nenhum gorila imbecil, tampouco.
Desta vez sigo andando pela rua deserta, mal levantando
o olhar quando um veículo passa por mim, os faróis furando
a
escuridão da noite. Existe uma última
alternativa, antes de finalmente procurar ajuda no Reikai... a casa da
namorada de
Yusuke, Keiko. Uma última cartada, antes
de seguir para os portões do julgamento final, à procura
do baixinho que governa
aquele lugar.
Eu sei aonde é, por que já estive
aqui, antes. Kurama uma vez conseguiu me arrastar para uma festa na casa
dessa humana.
Agora me lembro... foi na ocasião do noivado
dela e do Yusuke. Como sempre, era mais fácil ceder à
insistência dessa raposa
teimosa do que resistir... e eu acabei indo.
A casa tem dois andares; o de baixo é algum
tipo de loja, um restaurante, pelo que me lembro. Ela e a família
moram no andar
de cima. Eu ergo o olhar, e me surpreendo sentindo
alívio: há uma luz acesa em uma das janelas. Sem mais demora,
eu toco a
campainha. É preciso mais três toques
antes que alguém venha atender; quando a porta se abre, um rosto
sonolento de uma
mulher de meia-idade olha para mim, indagadora.
A mãe dela.
"A Keiko está?" eu pergunto, tentando manter
um tom 'educado' na voz. Ela olha para mim sem responder, tentando talvez
adivinhar o que alguém como eu poderia
querer com a filha dela. Eu digo a mim mesmo para manter a paciência;
não chegarei
a lugar nenhum se perder a cabeça, agora.
"Preciso falar com a Keiko" eu insisto, em tom baixo."Ela está?"
"Não, Keiko não está." ela finalmente resolve responder, ainda desconfiada. "Quem é você?"
"Meu nome é Hiei. Sou ... amigo de Yusuke."
eu explico, me sentindo algo estranho ao dizer esta palavra. Quando me
imaginei
dizendo semelhante frase? Mas os olhos da mulher
parecem se acender em reconhecimento, afinal.
"Ah, sim, agora me lembro de você... você veio à festa do noivado, não é?"
"Sim." eu respondo, um pouco impaciente. "Aonde
a Keiko está?" A expressão dela fica estranha, se entristece
um pouco. Ela
olha para baixo, com pesar.
"Keiko está em um velório. Um dos
colegas da escola infelizmente faleceu, ontem. Ela está com os amigos,
a alguns quarteirões
daqui... estão velando o rapaz na casa
da avó dele. Você quer o endereço?"
Eu não respondo, congelado no lugar com
a descoberta... Um... velório? Alguém morreu... Algum humano
estúpido foi pego
pelas garras da morte, dando fim à sua
existência inútil e curta. Finalmente, a explicação.
Todos os colegas da escola devem
estar no tal velório, isto explica a ausência
de Kurama, Yusuke, e Kuwabara.
Mas não explica a ausência dos pais
de Kurama, e seu irmão, minha mente grita, mas eu ignoro a voz perturbadora.
Olho
para a mulher, que ainda espera minha resposta.
Faço um gesto de afirmação com a cabeça, e
ela rapidamente pega um papel
e caneta para anotar o endereço.
Eu finalmente deixo a residência dos Yukimura,
sentindo o olhar da mãe da garota em minhas costas, enquanto me
afasto, sei
que não posso usar minha velocidade para
me afastar mais rápido, enquanto ela não entrar, o que ela
faz, alguns momentos
depois. Eu então disparo pela noite, na
direção indicada no papel.
Levo poucos segundos para chegar ao local, e,
não sei porque, meu núcleo nervoso que os humanos costumam
chamar de
coração bate mais rápido;
uma voz estranha está me dizendo para não entrar, para dar
as costas e partir. Eu sacudo a cabeça
ante tal pensamento fora de nexo. Chego à
entrada da casa, cujas portas se encontram abertas. Há muitas pessoas
por aqui,
apesar de ser uma casa grande, quase não
consigo passar por entre os humanos de expressão triste. Num relance,
penso que o
jovem que morreu realmente devia ser muito querido
por todos...
Meu olhar encontra Yusuke, ao lado de Keiko, sentados
em um canto da sala; ao lado deles, também sentados, estão
Kuwabara, Yukina, e Shizuka. Yusuke é
o primeiro a me notar, e seus olhos se arregalam de choque, por alguma
razão, isto
me incomoda, me deixa inquieto; O olhar dele
se encontra nervosamente com o de Kuwabara, que olha para mim. Eu estranho
quando não vejo em seu olhar nem um sinal
de rivalidade, ou irritação, por me ver. Ao invés
disso, ele abaixa o olhar, não
querendo me encarar.
Não há sinal de Kurama em lugar nenhum.
Meu coração está martelando
loucamente, agora, mas ainda assim, eu tomo o cuidado de manter minha expressão
neutra ao
me aproximar deles.
Yusuke ainda está olhando para mim, e olhando
mais de perto, vejo que ele está chorando silenciosamente. Aliás,
todos eles
estão. Fora Yusuke, ninguém olha
para mim, todos preferem centrar o olhar em alguma outra coisa. Um soluço
escapa de
Keiko, e Yusuke passa o braço por sobre
seus ombros, confortando-a. Não me incomodo em cumprimentá-los;
na verdade,
ninguém espera que eu faça isso.
Alguns momentos de desconforto visível para todos se passam.
"Onde está Kurama?" eu pergunto, finalmente,
deixando a pergunta sair como se ela estivesse há muito enclausurada
na minha
garganta. Yukina de repente esconde o rosto nas
mãos, e dezenas de pedras de lágrimas escapam por entre seus
dedos
delicados. Kuwabara faz o mesmo que Yusuke fizera
com Keiko. Yukina esconde o rosto no peito dele, chorando
desconsoladamente. Kuwabara encosta o rosto no
cabelo dela, murmurando palavras confortadoras, mas ele próprio
também
chora, seu corpo também sacudido por fortes
soluços.
Nenhum deles responde à minha pergunta;
Apenas Yusuke ergue o olhar angustiado para mim, e aponta com a cabeça
um
outro canto da sala, onde outro grupo de pessoas
está ajoelhada em frente ao invólucro de madeira que eles
chamam de
caixão. Sem palavras, ele está
querendo me dizer para ir até lá... mas por quê deveria?
Por que motivo deveria eu lamentar a
morte de algum humano, debruçando-me sobre
seu revestimento material, seu corpo agora sem vida? Ele está
querendo dizer,
talvez, que Kurama se encontra ali perto? Mas
não senti o ki dele em lugar nenhum aqui...
Sem saber porque estou fazendo isso, eu me afasto
deles, e ainda posso ouvir os soluços contidos de Yukina e Keiko
atrás de
mim.
Ao me aproximar do caixão, minha garganta
subitamente se contrai; meus olhos se arregalam de pavor... o desespero
começa
a invadir todo o meu íntimo. Ajoelhados
em frente ao caixão do falecido, se encontram Shiori, seu marido,
e Shuuichi, irmão
humano de Kurama.
Os familiares mais próximos... do falecido.
Embora o fato já tenha se estabelecido
em minha mente, ele ainda não estendeu suas raízes enegrecidas
em toda sua extensão,
e é só por esse motivo que eu consigo
passar pela mulher desconsolada e seu marido, acompanhado pelo olhar espantado
deles. Ainda não consigo apreender, absorver
totalmente esta idéia, e também por isso, eu consigo chegar
sem tremer diante
do caixão cercado por rosas brancas...
rosas quase tão belas quanto as que ele conseguia fazer florescer
com seu poder de
Youko.
Dentro do caixão, parecendo dormir, serenamente,
se encontra Kurama, deitado com as mãos cuidadosamente repousadas
no
peito, uma sobre a outra. Seus cabelos ruivos
compridos estão espalhados sobre o travesseiro de cetim. Ele está
vestindo um
terno preto, com uma camisa branca por dentro,
e gravata. Seu rosto perfeito está muito pálido, mas
sua expressão nunca
esteve tão relaxada... e tão bela.
Eu olho para esse rosto, e tenho a sensação que seus olhos
verdes irão se abrir a qualquer
momento e se focalizar em mim; seus lábios
se abrirão em um sorriso de prazer, como ele sempre faz, e seus
braços longos se
estenderão em minha direção,
exigindo que eu me aninhe neles...
Eu não me mexo do lugar, me encontro paralisado
por esta incrível visão surreal. Os minutos se passam e eu
não consigo me
livrar da sensação de que esses
olhos se abrirão de repente; eu continuo a olhar para ele, antes
que uma mão se deposite
suavemente em meu ombro, quebrando o encanto.
Eu ergo o olhar. Yusuke olha para mim com um pesar indescritível
na face.
Ele não diz nada, mas a mão em
meu ombro se aperta, tentando confortar-me.
"Como aconteceu?" Eu pergunto, surpreendido com a calma em minha própria voz.
"E-ele foi... a-atropelado... um caminhão
descontrolado o pegou na saída da escola..." Eu custo um pouco a
compreender
realmente o que ele está dizendo... atropelado?!...
atropelado? Que diabo de coisa mais estúpida é essa?
"Ele m-morreu
quase... quase que instantaneamente." ele
continua; sua voz está tremendo, seu auto-controle há muito
se foi. Lágrimas voltam
a escorrer por seu rosto. "H-hiei... não
conseguimos lhe avisar...gomenasai..." Ele está tentando se controlar,
sem sucesso, e
continua murmurando palavras de desculpas e lamento,
mas o som de sua voz aos poucos vai se distanciando de mim... eu
estou sendo subitamente carregado para outro
lugar, para outro tempo. Ainda estou ali, parado, olhando para o rosto
imóvel
de Kurama, mas num mundo completamente diferente.
Eu estou de volta ao passado, e inúmeras
imagens passam diante de mim como em um filme de cinema, que um dia Kurama
me
arrastara para ver.
Kurama sorrindo para mim, os olhos brilhantes,
as faces rosadas de prazer... as brincadeiras às minhas custas,
seu divertimento
quando ele conseguia finalmente arrancar de mim
uma reação...sua tímida declaração de
amor, e a mágoa em seu rosto quando
eu fugi covardemente para o Makai... nosso primeiro
beijo, nossa primeira noite de amor, em uma cama adornada de rosas... o
abandono, a paixão, a necessidade feroz
que ambos sentimos naquele momento, e em todos os outros, a partir de então.
Cada
expressão, cada sorriso, cada olhar, de
prazer ou de dor, de Kurama, vem à minha mente, todas elas se mesclando
em uma
só... rodando selvagemente, loucamente,
até que minhas pernas fraquejam e eu me deixo cair de joelhos, a
dura realidade do
presente me atingindo severamente.
Não percebo que estivera chorando... Só
me dou conta disso quando um brilho vindo de baixo chama minha atenção:
são
minhas jóias de lágrimas espalhadas
no chão, junto aos pés da mesa onde o caixão se encontra
depositado, esferas escuras e
brilhantes. Eu passo a mão em meu próprio
rosto, sentindo-o molhado, quente.
Yusuke se abaixa ao meu lado, disposto a me ajudar
a levantar, parecendo consternado com minha reação. Mas eu
faço um
gesto brusco para me libertar de seu toque, e
me levanto sem sua ajuda.
"Hiei..." A voz dele está impregnada de
preocupação, e num relance eu vejo que os outros estão
se aproximando de nós, seus
rostos igualmente preocupados; eu sei que não
poderei suportar isto; não posso suportar sua piedade, seus lamentos.
Eles nada
podem fazer por mim, ninguém pode.
Os olhos tristes de Yukina estão fixos em mim, suplicantes.
Não. Nem mesmo por ela.
Por isso me afasto, tão rápidamente
que tenho certeza de que todos presentes na sala, com exceção
talvez de Yusuke, têm a
impressão de que eu simplesmente sumi
em pleno ar. Não olho para o caixão antes de desaparecer;
não é necessário. Aquele
rosto pálido está para sempre dolorosamente
gravado em minha memória. Eu não preciso olhar para ele uma
última vez.
Aqueles olhos... aqueles olhos nunca mais se abrirão
novamente, nunca mais olharão para mim com um brilho travesso
dançando nas íris cor de jade...
nunca mais o sorriso caloroso dirigido somente a mim, o carinho, o amor
que nunca sequer
pensei em encontrar nesta existência solitária...
O mundo todo vira um borrão indistinto
enquanto corro pela escuridão, meu manto esvoaçando atrás
de mim, minha katana
balançando, batendo de encontro ao meu
corpo. Minha garganta está trancada, eu quase não consigo
respirar. Eu corro,
cegamente, deixando um rastro de jóias
escuras atrás de mim, minha visão toldada, meu coração
parecendo querer explodir de
dor em meu peito.
Um som horrível escapa finalmente de meus
lábios; um grito desesperado e insano flutua pela noite, como um
fantasma errante,
sem querer morrer. Eu grito seu nome, inúmeras
vezes, sem conseguir mais me controlar. Não tenho mais consciência
de mim
mesmo, tudo o que existe é apenas a dor,
o desespero, o sentimento de perda angustiante, o vazio esmagador que nunca
mais
poderá ser preenchido... Eu me sinto cair
de repente na escuridão, e intimamente rezo para que este seja o
fim do sofrimento, o
fim de tudo. Abaixo de mim não parece
haver nada, e eu caio, me sentindo impotente contra essa avalanche de emoções
esmagadoras que parecem exterminar o que ainda
resta de sanidade em mim. Continuo repetindo o nome de Kurama, e o som
de meus gritos ecoa pela escuridão fria
ao meu redor... fechando os olhos, eu me abandono na queda...
Estou sendo sacudido, e alguém está
chamando meu nome, com insistência. Eu abro os olhos, irritado, furioso
com quem quer
que seja que não está me deixando
morrer em paz.
A primeira coisa que vejo são os olhos
assustados de Kurama. Ele está me segurando pelos ombros, e um imenso
alívio invade
seu rosto quando eu finalmente acordo totalmente.
"Hiei!... Ainda bem que acordou... que pesadelo
horrível era esse? Quase não consegui acordar você!"
Ele me olha
preocupado, suas mãos sobem para acariciar
meu rosto ainda úmido das lágrimas. Eu estou por demais confuso
para falar
coisa alguma, mas ainda sinto soluços
remanescentes do sonho escapando de minha garganta. Ele nota isso, e sua
expressão
consternada se agrava; ele me puxa para entre
seus braços, acariciando meu cabelo.
Eu ainda estou sob os efeitos do sonho... por
isso, deixo que as lágrimas continuem fluindo, não faço
nada para estancá-las.
Kurama não diz nada, apenas me abraça
ainda mais fortemente, e eu me agarro a ele, sentindo uma mistura de dor
e alívio ao
estar novamente entre seus braços, ainda
não acreditando que tudo fora somente um sonho estúpido...
mas, e se agora for um
sonho enganador? De repente vou acordar e estar
novamente no mar de desespero de antes, correndo pela noite,
atravessando o vazio... Este pensamente arranca
mais lágrimas de meu íntimo e o abraço de Kurama se
renova; de alguma
forma, o youko parece compreender que não
preciso de palavras neste momento, apenas de sua presença, de seu
aperto
firme.
Aos poucos, eu vou me acalmando, e as lágrimas
finalmente vão cessando. No entanto, continuo aninhado em seus braços,
de
olhos fechados. Uma fagulha de raiva se acende
fraca em meu peito. Mas que diabos de sonho foi esse? Que droga de peça
estúpida meu inconsciente me pregou?
Minha mente clareia mais, e de olhos ainda fechados,
eu começo a me lembrar. Eu estou em sua cama, em seu quarto. Os
pais
dele e seu irmão se encontram fora, viajando.
Kurama aproveitara essa ocasião para me preparar um delicioso jantar,
e depois
disso fizemos amor, e adormecemos, abraçados.
E então, esse sonho traiçoeiro. E parecendo tão real...
Eu abro os olhos, e me liberto um pouco de seu
abraço para olhar para ele. Sua expressão ainda está
preocupada, mas ele
sorri um pouco, e seus lábios quentes
e macios se aproximam dos meus suavemente, em um leve beijo. Eu fecho novamente
os
olhos, me rendendo totalmente às sensações
que começam a tomar conta de meu corpo. Meu coração
começa a acelerar-se,
desta vez de excitação, não
mais de pavor. Com suas carícias e toques ele consegue aos poucos
afastar de mim os vestígios
finais do pesadelo enquanto nossos corpos se
tornam um só, nossos gemidos e suspiros se fundindo numa só
respiração, num
só anseio... até a explosão
final, que nos deixa sem fôlego e exaustos, as pernas entrelaçadas,
os braços ao redor um do outro,
nossa pele úmida com o suor de ambos.
Minha cabeça repousa sobre o peito de Kurama
e eu deixo escapar um suspiro de satisfação. Estico um braço
por sobre sua
cintura e me ajeito melhor, sentindo a mão
dele descrevendo pequenos círculos em meu cabelo.
O pesadelo já virou uma sombra distante,
agora, suas garras pegajosas e frias não podem mais me atingir.
Porém, lá no fundo
de minha alma, quase posso ouvir meus próprios
gritos angustiados, preso como estava na armadilha de meu próprio
inconsciente. Eu aperto meus olhos com força,
tento afastar de vez estas últimas seqüelas da minha mente.
Um dia, talvez, eu
consiga.
O quarto está mergulhado no mais total
silêncio. Tenho a impressão de que qualquer mais leve som
o fará estilhaçar-se, como
se fosse uma parede fina de vidro. Kurama deve
estar tendo esta mesma impressão, pois também não
fala nada; logo ele, esta
raposa falante que nunca consegue ficar calado
por mais de alguns minutos.
Estranhamente, não estou sentindo vergonha
pelo momento de fraqueza que tão abertamente demonstrei. Em vista
de tantas
fraquezas que já desvendei diante dele,
esta é apenas mais uma a se juntar à lista; Minha própria
decisão de ficar a seu lado
constituindo-se numa fraqueza maior. Eu deveria
me sentir arrependido, mas não estou. Tudo o que quero neste momento
é
deixar-me ficar aqui, junto dele, sentindo seu
cheiro, o contato de sua pele, o aroma herbal de seus cabelos... Sim, isto
poderia
ser considerado o paraíso... se este existisse.
Já estou quase adormecendo quando a voz
suave dele chamando meu nome me traz de volta, e eu abro os olhos lentamente,
viro minha cabeça para olhar para ele.
"Hiei... o que você estava sonhando?" Ele pergunta suavemente.
"Eu não me lembro." eu murmuro, desviando
o olhar, querendo com isso encerrar esse assunto. É claro que ele
não cai nesta,
mas finge acreditar, e reforça o abraço
em volta de meu corpo. Mais alguns minutos de silêncio, até
ele falar novamente, num
sussurro.
"Hiei..."
"Hn..." eu deixo escapar um tom de exasperação,
fechando meus olhos. Não, eu penso, é claro que ele não
vai desistir assim
tão fácil.
"Você estava falando meu nome enquanto sonhava..."
ele está escolhendo as palavras com cuidado, para não me
aborrecer;
mas é tarde, pois já começo
a sentir a irritação em meu íntimo começar
a crescer. Não vai demorar muito para algo estúpido
escapar de meus lábios, e ele sabe disso,
mas mesmo assim...
"Na verdade," ele prossegue, "você estava
gritando meu nome... se 'kaasan e os outros estivessem em casa, teriam
irrompido
pela porta de meu quarto imediatamente..."
"Bem, me desculpe por ser um estorvo para você
e sua família..." eu falo em um grunhido, tomando refúgio
no sarcasmo, me
sentando de repente na cama, me afastando de
seu abraço acolhedor.
"Hiei... por favor, não seja assim. Não estou falando disso. É que...você me deixou preocupado."
Eu fico calado, sentado na beira da cama, de costas
para ele. Eu sei que ele espera que eu diga a verdade, mas eu estou por
demais relutante em me abrir mais para ele...
como se isso fosse possível, depois de tudo o que já aconteceu
entre nós. Mas
hábitos de uma vida inteira demoram a
morrer, mesmo quando há uma raposa teimosa em sua vida disposta
a mudá-los.
Kurama se mexe na cama, e sinto-o aproximando-se
de mim. Seus braços esguios me envolvem, ele esconde o rosto em
minha
nuca, arrancando de mim um calafrio involuntário
quando sua respiração pousa em minha pele. Eu continuo imóvel.
"Você estava sonhando com minha morte, Hiei?"
Ele pergunta baixinho junto ao meu ouvido. Eu praguejo internamente. Será
que me tornei assim tão transparente?
Será que ainda sou capaz de esconder alguma coisa dele? Sem palavras,
eu apenas
balanço a cabeça, admitindo finalmente
para ele o que estivera tentando esconder com todas as forças. Ele
faz com que eu me
vire de frente para ele, e segura ternamente
meu rosto em suas mãos, me obrigando a encará-lo.
"Hiei, quando o momento da morte de Shuuichi Minamino
chegar, e este corpo vier a morrer, meu espírito tomará
novamente
a forma de Youko-Kurama, no Makai." Um dedo seu
percorre meus lábios, suavemente. "Poderemos ficar juntos lá,
então."
Eu me deixo mergulhar nas profundezas de seus
olhos verdes incrivelmente belos, nesse momento marejados de preocupação
comigo.
"Eu sei disso." Eu afirmo simplesmente, como se
a sensação angustiante e desesperadora que tomara conta de
mim no sonho
não fosse nada, como se não fosse
nada estar mergulhado na dor, ao olhar para este rosto para sempre imóvel,
para esses
olhos para sempre fechados... sim, eu sei muito
bem que a morte de Shuuichi Minamino não implica na real morte de
Kurama...
será apenas uma volta ao corpo original
de Youko... mas no pesadelo, esse fato não serviu de nada para mim...
este
conhecimento de nada aplacou a dor de olhar para
o corpo inerte dele no caixão... Quase estremeço ao me lembrar
disso, e
abaixo o olhar, mas ele ergue novamente meu rosto.
Sua expressão é séria, mas seus olhos são gentis.
"Sendo assim, não há motivo para preocupar-se, não é?"
"Não estou preocupado." eu declaro, sem muita convicção. Ele sorri, e beija-me levemente na testa.
"Isso é bom. Nada mais de sonhos bobos, certo?"
Eu dou de ombros, sabendo muito bem que não
estou enganando ninguém com meu ar de descaso, mas como sempre,
ele
concorda em entrar no meu jogo, e não
insiste mais. Seus braços me envolvem novamente e eu me abandono
neles, e ele me
puxa novamente para deitar ao seu lado na cama,
e puxa a coberta sobre nós dois, seus olhos quase se fechando de
sono.
"Boa noite, koibito..." ele murmura, num suspiro,
adormecendo quase que imediatamente depois. Eu permaneço acordado,
embalado no sobe e desce de sua respiração,
ouvindo o som do vento fustigando as árvores do lado de fora.
Não quero dormir agora. Na verdade, estou
totalmente sem sono, e uma inquietação crescente se aloja
em meu íntimo, me
levando a me libertar cuidadosamente do abraço
adormecido de Kurama e levantar da cama. Eu me visto rapidamente e chego
até a janela, inspecionando a noite de
lua cheia, que joga seus raios pálidos por todo o quarto, criando
uma suave penumbra.
Preciso sair. E é o que faço, em seguida, num rápido salto através das copas das árvores.
Em minutos, eu chego até o topo de um edifício
no centro da cidade, e olhando para baixo, perco alguns momentos
contemplando a cidade adormecida. Há poucas
luzes acesas... mas se há alguém acordado nas ruas, certamente
não pode me
ver, camuflado como estou pela escuridão
da noite atrás de mim.
Eu me perco em um momento de reflexão sobre
o sonho estranho e estúpido que conseguira acabar com meu árduo
e treinado
auto-controle. Um sonho bobo, como Kurama mesmo
dissera, mas mesmo assim realmente revelador... Alguma vez já parei
para pensar na dimensão do sentimento
que tenho por aquela raposa teimosa? Eu dependo tanto dele... como jamais
pensei
em depender de alguém. Jamais admitiria
isso, mas isso não apaga o fato de que estou tão ligado a
ele, que meu próprio
inconsciente se preocupa com sua morte, mesmo
sendo só a morte do corpo passageiro, não a morte real...
criando esse
sonho perturbador que foi capaz de me arrancar
de minha sempre tão superior atitude
"não-estou-nem-aí-para-coisa-nenhuma".
Eu suspiro profundamente.
Volto enfim para casa... estranho, desde quando eu já tive uma casa?
Sua casa é nos braços dele... sempre
foi e sempre será, minha mente me lembra, e eu concordo intimamente.
É isso
mesmo... como humano ou como youko, eu pertenço
a ele; não existe mais volta atrás. Só o futuro...
e de preferência, sem
caminhões descontrolados no caminho. Isso
eu hei de garantir, vigiando-o de perto. Só por vias das dúvidas...
Quando eu volto ao seu quarto, ele me espera acordado,
mas não há censura em seu olhar; ele me recepciona com um
sorriso
afetuoso; seus olhos se acendem calorosamente,
e como de hábito seus braços se abrem para me acolher...
Eu me aninho neles
sem restrições.
Finalmente adormeço, com o rosto repousado
em seu peito, meus dedos entrelaçados em uma mecha de seus cabelos
sedosos. E tenho outro sonho... mas este é
diferente.
Eu me encontro sozinho, no meio do nevoeiro. Posso
ouvir estranhos sons ao longe... sei que estou no Makai, pois a neblina
se
dissolve um pouco e consigo distinguir um dos
muitos territórios por onde costumo vaguear, quando estou a serviço
da
Mukuro, recolhendo humanos idiotas que têm
a infelicidade de tropeçar em algum portal escondido entre os dois
mundos, e
caem aqui. Eles têm sorte, quando os encontro
antes que alguém mais o faça, e os guio de volta ao Ningenkai.
Alguém se aproxima de mim. Eu me viro,
mas não estou de alerta, pois já identifiquei o ki da criatura
que chega perto de mim
em passos leves.
Poucas vezes vi Kurama em sua forma Youko... a
figura alta chega diante de mim, seus olhos dourados alongados me fitam,
de
cima de sua altura ainda maior. Ele veste um
traje branco, e seus cabelos cinzentos são ainda mais compridos
do que os de
Shuuichi Minamino, chegam até a sua cintura.
Eu me encontro preso em seu olhar. Um olhar frio e penetrante. Youko-kurama
me olha, e de repente, um sorriso caloroso se
manifesta em seus lábios... Eu quase que como posso ver seu rosto
humano por
trás de seu rosto de youko. Seus olhos
não estão mais frios, mas se encheram de um calor que eu
acho incrivelmente familiar.
Sem dizer nada, ele estende a mão para mim.
Eu hesito por um momento, então pego sua mão quente na minha.
"Para sempre, koibito." ele murmura, e seus braços longos de youko me envolvem. Eu fecho os olhos.
Acordo com seu abraço firme ao longo de
meu corpo, e sorrio sem sentir. Eu sei que é verdade. Posso não
acreditar em
muitas coisas... mas acredito nesta: para sempre,
pertenceremos um ao outro.
Eu retribuo o abraço, e adormeço
novamente, desta vez sem sonhos, apenas com a sensação confortante
de seus braços ao
meu redor, e o sopro suave de sua respiração
em minha face.
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