Estavam começando a subir o Monte,
pelo velho caminho que Malla havia
citado. Estava bem conservado, sinal de que as Magas estavam bem e
cuidavam do lugar onde viviam há séculos. Em torno da trilha, a vegetação era
cerrada, de árvores altas e folhudas como repolhos. Havia muitas flores e
frutas, mas nenhum animal foi visto por nenhum dos Escolhidos. O lugar parecia
tão antigo e morto que dava arrepios. Estava frio, mas não havia vento algum.
Tudo era silencioso, parado, vazio. O ar era pesado, como se estivesse
armazenado ali desde tempos impensáveis, esperando por alguém que viesse
respirá-lo. E o caminho parecia não ter fim: andaram por horas e a paisagem
não mudou quase nada, e eles não conseguiam ver muito à frente por causa das
árvores que derramavam seus galhos pela trilha. Esse mesmo congestionamento
de galhos no caminho fazia parecer noite e cada um dos Escolhidos via apenas
os vultos dos companheiros que estavam mais à frente. Trildner ia puxando a
fila pelo caminho estreito, com Ilgmars tão silencioso ao seu lado que nem
parecia respirar. Atrás iam Nerissa e Algners, juntos, trocando sussurros de vez
em quando. Ninguém ousava falar muito alto para não perturbar a estabilidade
secular do bosque, nem mesmo Suunta, geralmente tão falante. Fimlodel vinha
ao lado dele, enrolado em suas peles castanhas como uma lagarta num casulo,
pensativo.
Depois de muitas horas subindo desse jeito, sem parar, os companheiros
avistaram a famosa Torre de Ina. Só uma parte estava ainda de pé; um bom
pedaço havia sido destruído pelo tempo e talvez por outras coisas. Era muito
alta, construída com pedras claras dominadas pela hera que crescia
lentamente havia anos. Em toda a volta da torre estavam encravadas pequenas
janelas quadradas, em diferentes alturas, de modo que lá de dentro deveria se
ter uma visão privilegiada de todo o bosque e das imediações. A parte em
ruínas não havia sido invadida por plantas ou musgos, indicando que o lugar era
tão bem cuidado quanto o caminho que levava à torre. O chão do pátio em
torno da construção também estava varrido e atrás das ruínas uma parte dele
tinha sido transformado em horta. Os canteiros continham toda espécie de
plantas: comestíveis, medicinais, decorativas, e eram arrumados e limpos. Um
pouco mais afastada, uma fonte de água cristalina jorrava por uma bica em
forma de serpente. Os Escolhidos sentiam sede, mas não ousaram tocar em
nada e por alguns minutos permaneceram em pé, quietos, admirando a beleza
triste daquele lugar esquecido, até que Ilgmars, com seus olhos que nunca
deixavam escapar nada, vislumbrou um vulto numa das janelas mais baixas da
Torre. O vulto deve ter percebido que foi visto, porque desapareceu
rapidamente, mas logo depois a mesma janela foi aberta e um rosto sorridente
apareceu por entre a hera:
- Bom dia! Entrem; estávamos esperando por vocês! - a voz feminina indicou
uma porta por trás das ruínas e os Escolhidos entraram, não sem um pouco de
receio. Tinham subido dois lances de escada quando viram uma moça no
patamar entre os andares, sorrindo enquanto comia uma maçã.
- Vamos, apressem-se! Não temos muito tempo! - e entrou por uma pesada
porta de carvalho. O grupo seguiu atrás, em silêncio. Atrás da porta havia uma
sala grande, clara, rodeada de estantes recheadas de livros. Apesar da
organização da parte externa da torre, a biblioteca estava bem bagunçada:
havia livros espalhados por toda a parte, pergaminhos e penas sobre as
escrivaninhas, envelopes em todos os cantos. Pelo visto o problema ali era
físico: havia coisas demais e muito pouco espaço.
Duas moças estavam na sala. As duas tinham mais ou menos a mesma altura,
cabelos e olhos castanhos e pele bem clara. Usavam vestidos azuis, ricamente
bordados, e enfeites dourados nos cabelos. Uma delas, a que parecia ser um
pouco mais velha, foi quem começou a falar:
- Bom dia. Meu nome é Marne e
sou uma das Três Magas. Esta é Brina, a mais nova. Lefl, a do meio, foi quem
vocês viram pela janela. Ela foi desenformar o bolo que estava assando. Vejam,
aí vem ela.
Pela porta surgiu Lefl, carregando um bolo ainda quente, sorrindo. Passou
correndo pelos visitantes e largou o prato barulhentamente sobre a mesa
central, bufando e gemendo:
- Ai, queimei meus dedos! Que droga! Mas o bolo está ótimo. Vou servir vocês.
Enquanto distribuía os pedaços, ia falando sem parar, numa velocidade
espantosa:
- Mas vocês demoraram, hein? Tudo bem, a gente perdoa. Sabemos dos
problemas cavalares que vocês enfrentaram. De qualquer maneira, pelo menos
foram espertos o suficiente para resolver vir até aqui, mesmo com todas essas
coisas horríveis que esse povo bobo fala de nós. Mostra que vocês têm
cérebro. Isso é ótimo; detesto gente burra. Mas vamos aos negócios: querem o
Cristal, não é?
- Sim, sim, mas antes precisamos de ajuda com nossa amiga Sibnil, que está
doente - disse Trildner. Parecia estar falando com Iidlar. Lefl não ficava quieta;
mesmo sentada ficava balançando os pezinhos.
- Esqueça - disse Marne, sentando-se ao lado dela.
- Não podemos esquecer! Ela está morrendo! - disse Fimlodel, com a boca
cheia de bolo.
- Escutem, amores - falou Lefl, muito afetada. - Eu até gostaria de dar uma
olhada na sua amiga chatinha e ver que doença ela tem, sabe?, me interesso
muito por essas coisas. Mas não vai ser preciso. Ela está muito bem, agora.
- Como assim?
- Seus amigos tiveram ajuda dos centauros. Irão conhecê-los também, mais
tarde. Por hora esqueçam esse assunto e vamos tratar de coisas mais sérias -
disse Brina.
- Sim, o Cristal - assentiu Algners, levantando-se.- Achamos que a hora dele
chegou.
- E chegou mesmo, - concordou Lefl - mas se vocês acham que é só segurar o
negócio e tchum, ele solta um raiozinho colorido e mata todo mundo, estão
muito enganados. Esse cristal é tão complicado que nem nós, que estamos aqui
há tantos anos que nem lembramos mais e não temos absolutamente nada para
fazer a não ser estudar, sabemos direito como ele funciona.
- Só sabemos o que vocês também já sabem: que Nerissa é a Uma e Tandaíla,
a Outra - concluiu Marne.
- E como vamos saber quem é o tal Homem Contrário? - perguntou Nerissa.
- Se Agnël falou que ele virá, então ele virá sozinho, e ninguém precisará
procurar por ele - respondeu Brina.
- Podemos ver o Cristal? - perguntou Nerissa.
- Claro! Deverão mantê-lo com vocês, em segurança, até encontrarem o
homem contrário.
Dizendo isso, Marne se levantou e abriu um armário no canto mais escuro da
sala, tirando de lá de dentro uma grande caixa de madeira. Parecia pesada,
apesar de ter como único ornamento metálico a fechadura. Tirando uma chave
do pescoço, ela abriu com dedos ágeis o cadeado e de dentro da caixa retirou
com cuidado três caixas menores, de givuk, cada uma com um ornamento
diferente na tampa, indicando as três forças fundamentais. Lefl tirou uma outra
chave do bolso do vestido branco e abriu as três caixinhas. Dentro de cada
uma delas havia um pedaço disforme de cristal reluzente, sozinho no veludo
preto de sua caixa preta.
- Aí estão - disse Lefl, virando as caixas para que os convidados pudessem ver
melhor. - Os famosos pedaços do Cristal de Malebren. Olhando assim a gente
não dá nada, mas depois de juntos, sai de baixo...
- A profecia diz que os pedaços devem ser unidos, mas não vejo como - disse
Nerissa. - Parece impossível que possa haver qualquer articulação entre eles;
não vejo nenhuma parte análoga.
- Você não precisa ver nada, querida - sorriu Lefl. - Quem vai ter que se
entender com o Cristal é o Homem Contrário. E você, apesar de estar de calças,
não se parece nem um pouco com um homem.
Nerissa decidiu que não gostava do jeito debochado de Lefl, mas ficou quieta.
Olhava para Algners e via desconfiança em seu rosto, coisa de homem
acostumado a lidar com coisas práticas e pouco afeito a lendas e
transcendentalidades. Fimlodel e Suunta não estavam prestando a menor
atenção, ocupados com seus quartos pedaços de bolo, Trildner ajeitava os
cabelos enquanto examinava os pedaços do Cristal. Ilgmars estava com uma cara
esquisita, como se estivesse tentando se lembrar de alguma coisa importante,
como se uma idéia estivesse tentando galgar o muro de sua consciência mas
caísse para trás em cada tentativa. Seus estranhos olhos estavam fixos nos
fragmentos, sem piscar, brilhando como nunca. Nerissa ficou assustada e
voltou-se para as Magas:
- Então é só isso? Ficar carregando essas caixas até encontrar seu verdadeiro
portador?
- Sobre o Cristal, a única coisa que precisam saber é que os pedaços não
devem nunca, em hipótese alguma, ser separados. Por isso devem ser mantidos
sempre em suas caixas, dentro da caixa maior. É preferível que a caixa seja
levada por uma mulher. As forças principais são todas femininas e não é bom
interferir com essa ordem até que o portador seja encontrado e estabeleça o
equilíbrio. Isso é tudo - suspirou Brina, que estava terminando de desenhar uma
réplica da espada de Algners, muito bem desenhada, por sinal.
- Agora, quanto aos cavalos... - disse Lefl, de mãos na cintura, olhando para
Brina. A colega enrubesceu:
- Não precisava ser tão direta assim...
- Precisava, sim. Se só nós podemos ajudá-los, então é melhor abrir o jogo.
- Por favor, Lefl. Já discutimos sobre isso. Não vamos voltar atrás.
- É verdade, Lefl. Vamos deixar como está. Também não gosto dele, mas
podemos resolver isso sozinhas.
- Tudo bem, tudo bem - a maga cedeu, afinal. Jogou o cabelo volumoso para
trás num gesto petulante e disse:
- Escutem, fofos, podem deixar o negócio dos cavalos por nossa conta. Vamos
tentar resolver, mas não podemos prometer nada. Mas eu recomendo que não
gastem mais dinheiro com animais: não sabemos quando vocês vão finalmente
acordar e ver todos eles lá, bonitinhos, pastando. E digam à sua amiga chatinha
que ela não precisa mais jogar encantos sobre os cavalos do Comandante e do
príncipe. Eles não vão escapar nunca, não importa quão forte seja a magia
lançada sobre eles.
- Podem ir agora, amigos - disse Marne, abrindo a porta de carvalho. - Não
percam tempo. Nós ainda nos veremos de novo.
- Obrigado pela ajuda - disse Trildner, cortesmente.
- E pelo bolo - completou Suunta.
Ilgmars parou em frente a Lefl, como se fosse dizer alguma coisa importante,
mas na hora "h" simplesmente disse "até logo" e foi embora.
- Elfo esquisito, não? - perguntou Marne.
- Eu achei uma gracinha... - disse Lefl, piscando um olho enquanto tirava os
pratos da mesa.
Zitmil eTutanar by Leticia
Dáquer 1995
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