AZAR

Então eu estou nesta droga de ônibus, indo sei lá para onde. Esses ônibus circulares são um bom lugar para se passar a noite, especialmente se a opção é um banco de praça (duro e desconfortável) ou um escadaria do Centro (longe de ser anatômica).

Fico sentado bem no fundo do ônibus, lugar onde ficam marginais, pi-vetes que descem pela porta de trás, crianças (ou nem tanto) que passam por bai-xo da roleta, camelôs que o-cupam dois bancos com to-das as mercadorias, men-digos fedorenteos & de bun-da de fora. Mas eu não sou nenhum desse tipos, já es-tive com a vida em ordem, casa, emprego, aparelho de cd, tv a cabo, computador. Tudo o que a vida de bur-guês nos proporciona. Perdi tudo para os agiotas, quan-do o meu jornal faliu. O que os agiotas não levaram eu gastei com Prozac e uísque. Às vezes muito uísque.

Olhando pela jane-la vejo as ruas da metrópole passando como um filme a-celerado. Dá para ver a ce-na, o ambiente, mas não os detalhes, os rostos. Lembro que eu costumava pegar meu laptop, tomava um táxi, mandava o motorista passear sem rumo e eu me punha a escrever. Contos, poesia. Olhava pela janela do táxi e escrevia, escrevia. Publicava alguma coisa na seção (pretensamente) lite-rária do meu jornal, o 'Tor-re de Observação'. Que im-ponência.

Bem, ainda carrego o laptop. Arranhado, sem baterias, mas inteiro. Car-rego como um troféu. É a ú-nica coisa que possuo, além das roupas do corpo e al-gum dinheiro. Dinheiro para pagar a passagem e passar na roleta, com dig-nidade. Nada de sair pela porta de trás, ou me ar-rastar no chão por baixo da roleta. Mas voltando ao laptop : ainda martelo as teclas dele, ainda escrevo contos & poesia, mas só posso carregar na minha memória, que também já está sem baterias. Gostaria de vê-lo funcionando, eu o ligo só na imaginação, fico vendo sua tela cinza & apagada e imagino meu bom e velho editor de tex-tos. Wordperfect? A bolinha do mouse já não gira tão fácil quanto antes, mas eu penso no cursor que pode-ria cruzar a tela com ape-nas um movimento rápido de meus dedos.

A realidade dura & áspera é o fedor que exalo (dias, semanas, só lavando as mãos e o rosto), as rou-pas virando farrapos (um mês e meio com a mesma calça, camisa, capote de couro e tênis - eu podia ter ido à bancarrota com um tênis melhorzinho que este), apenas uma nota de um real no bolso, o que paga a passagem e ainda sobra troco para um café. Não que eu seja bem-vindo no balcão de alguma lancho-nete. Ou em outro lugar.

Lembrei do meu outro (e mais novo troféu). Uma bateria para laptop , novinha em folha, que car-rego no bolso esquerdo do capote.

Rememorando: se-mana passada (não!foi on-tem!) entrei em uma loja de informática.

-O que o senhor quer?

-...

-Olha, eu vou lhe buscar um pão lá dentro mas de-pois o senhor tem que ir em-bora pois todos já fo-ram para casa e eu preciso fechar a loja, tá?

A funcionária desa-pareceu por uma porta. De-via ter uns vinte anos. Eu a-proveitei sua ausência e temtei alcançar as baterias para laptop que estavam no balcão, mas eu não podia ver qual eu pegava. Apa-nhei uma qualquer e pus no bolso. Nesse instante che-gou a funcionária com um sanduíche na mão. Ela no-tou, então, o laptop que eu carregava.

-Onde o senhor pegou isso? O senhor tirou da vitrine?!

Ela estava apavo-rada, achando que eu esta-va roubando o aparelho. O que era um elogio, já que ele era usado e estava na rua comigo há algum tem-po. E não parava de me chamar de senhor.

-Eu v-vou chamar a polícia!

Aí eu pulei em cima dela, não para agredir mas para evitar que tocasse o a-larme de debaixo do balcão. Essas lojas sempre têm um alarme embaixo do balcão. Rolamos no chão e ela ba-teu com a cabeça e não gri-tou mais, nem me chamou mais de senhor. Morrer é simples.

Horas depois, já dentro deste ônibus, fui ver a bateria que tinha rouba-do. Era de outra marca, não era compatível. Meu laptop continua apagado.

Azar: teu nome é M-O-R-T-E.

 

FIM

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