ESPÍRITO NATALINO
-Você não fica triste de não termos uma árvore de Natal ... mesmo daquelas velhas e sujinhas? -ela perguntou.
-Olha, eu ... certa vez esmurrei um Papai Noel bêbado ... quer dizer, era um cara fantasiado de Papai Noel, estava bêbado e urinava dentro do metrô. Eram umas 3:50 da madrugada do dia 25 ... de dezembro ... lembro do vento e das luzes ... mas não me importo de não termos nosso próprio pinheirinho. Aliás, meu pinheirinho, pois eu moro aqui - você não mora aqui... -respondi.
Os dois pratos com resto de tele-pizza ainda estavam perto da porta do quarto, no chão. Nós estávamos deitados na minha cama, fumando e divagando, curtindo o "depois". Ela era uma prostituta que fazia ponto na esquina próxima ao meu prédio, a gente já era até amigo, quer dizer, nos dávamos bem, eu sempre chamava ela para o meu apartamento, e ela acabava se achando no direito de opinar sobre a bagunça, sobre as roupas sujas que se acumulavam no banheiro (e porta afora) , sobre a sujeira da cozinha, sobre os poemas que eu escrevia nas paredes. Ela se sentia meio mãe meio esposa, mas com direito integral de reclamar.
-Quer dizer que você bateu num Papai Noel?! -ela perguntou, com uma sutil ironia.
-Bom, ele mijava numa das paredes do metrô, e com o movimento a poça de urina se aproximava de mim ... quando eu o acertei, ele caiu no meio da poça, desmaiado, e eu só fiquei vendo aquela roupa vermelha, vagabunda, se encharcando..
-CHEGA! -ela me interrompeu. -Eu vou embora ... agora que é perto do Natal, fim-de-ano, tem mais clientes. Eles fedem, são nojentos, mas pelo menos dizem palavras de amor enquanto eu estou na cama.
Ela se vestia e resmungava. "Palavrasdeamor" ficou ressoando na minha cabeça. Me lembrei de uma velha canção de Roberto Carlos, eu tinha até gravado numa fita, onde estará? Essas coisas sempre se perdem, endereços & telefones, fotos antigas, aquele meu velho anel de caveira.
-Vou ler para você o meu último poema -eu falei, e ela assentiu com a cabeça. Eu procura por ele, tinha escrito ontem mesmo entre o rodapé e a tomada. Estava começando a faltar lugar nas paredes. -Aqui, achei, espere, não vá embora, achei!
Ela já estava pronta para ir embora, com a mão na maçaneta, mas fez cara de paciente, até porque GOSTAVA de ouvir minhas poesias.
-Por que você não compra um bloco de papel, sei lá? -ela perguntou.
-Achei, achei! Chama-se "Anti-ciclope tropical". Lá vai: "e o céu tava plugado/ em alguma Internet de sabe-lá-Deus/ recebia informações (cores em forma de bits)/ um puta azul e aquele sol amarelo-lava se fixando na minha retina/ e não querendo mais ir embora/ eu já estava vendo tudo com o próprio cérebro/ percepção em stereo/ nuvens que pareciam lenhador, baleia, dinossauro, catapulta, árvore/ e outras formas que não constam no dicionário".
Ela disse que achou bom e que precisava ir.
(...)
Dez minutos depois bateu na porta a dona do edifício, uma velha insuportavelmente chata e ranzinza.
-Eu vi aquela moça saindo do prédio! Eu sei como ela ganha a vida e se que ela vem te visitar e vocês ficam fazendo indecência e tomando drogas e
Eu simplesmente não estava ouvindo, só olhava para ela e concordava com a cabeça, sempre que a velha ficava mais eufórica. Já sabia que depois de alguns instantes ela iria embora. Aliás é sempre assim, as pessoas depois de algum tempo vão embora, ninguém fica para sempre. O que no meu caso é um alívio.
Ela já havia terminado de falar e ia embora, quando virou-se para mim novamente, montou um sorriso naquela cara enrugada e perguntou:
-Eh, você vai passar o Natal com a família, vai?
-Não, mamãe morreu de mês passado e estamos sem clima festivo.
Ela desmontou o sorriso e balbuciou um "oh, eu lamento". Talvez eu tivesse conseguido fazer ela ir dormir com a idéia de que ela TAMBÉM já estava com idade suficiente para morrer. Talvez até com câncer.
Aí eu fechei a porta, único lugar onde eu não escrevia poemas, e coloquei um som e comecei a dançar. Era uma coisa que eu gostava de fazer. Dançava sozinho, no escuro, afastando os móveis para não tropeçar em nada. Fechava os olhos e dançava, um dos meus momentos mais íntimos, mexia o corpo e deixava o pensamento viajar, pensava que todos os sonhos poderiam se juntar, e deles sairiam idéias & cheiros estranhos que me fariam lembrar de lugares, de sensações, coisas já vistas. Eu pensava em cores, em vozes, em orgasmo, em texturas & coisas ásperas que meus dedos já tinham tocado, em sabores, pensava nos sabores bons e ruins, no doce e no salgado, pensava em minha mãe morta, no cheiro das flores e no cheiro do hospital, no rosto de meu pai tão pálido como se ELE é que estivesse no caixão, os parentes distantes que vinham apertar minha mão.
Então o vizinho de baixo começou a bater no assoalho (já era quase meia-noite) , dizendo que ia chamar a polícia e onde é que já se viu tanta algazarra numa só noite, etc. Ele já havia chamado a polícia em outras ocasiões então eu parei de dançar, desliguei o som e gritei um "desculpa, tá bom?". Acho que ele compreendeu.
Arrastei uma poltrona do sofá (sem fazer barulho) até perto da janela e me sentei. Podia ver toda a cidade, as luzes de Natal, os postes - como a luz dos postes parecia mágica nesses momentos! Tirei a caixinha de prozac de dentro do bolso, tomei uma cápsula com o resto de pepsi que veio junto com a tele-pizza. Arrotei. Podia ver a esquina próxima, minha amiga prostituta não estava lá. Acendi um cigarro. O maldito do prozac me dava insônia. Era 22 de dezembro e eu ficaria acordado, sem conseguir pegar no sono, até o Natal. Maldito remédio.
Mas tudo bem. Há 28 anos que eu esperava a vinda de Papai Noel, poderia esperar mais um pouco.
FIM