quase-poesias de Marcio de Almeida Bueno


POSTE

eu só peço salvação, se não for incômodo
ou em me mudo para outro cômodo da mesma casa, e aí crio asas e vôo, creio que posso planar, se subir bem alto
impulsionado por um foguete ou por um salto,
eu só peço caridade, se não for desfeita
ou eu me mudo para outra cidade onde haja a mesma rua, mesma casa, o mesmo poste, creio que posso cultivar lírios de cemitério na matéria fértil do meu cérebro, eu só peço paz & amor, se não for antiquado, creio que posso imitar um poste, tipo ficar parado (na esquina dessas ruas que eu não consigo atravessar) sem ninguém me notar, basta cruzar os dedos ou criar asas, ou subir bem alto, ou dar um salto.

 

NÃO ME BATA DE NOVO COM ESSA CORRENTE

todas de pé no programa Sílvio Santos, domingo é dia de roupa branca, o controle remoto não funciona mas take it easy, as ruas continuam em linha reta ou não e as bocas abrem-se e fecham-se sem parar, sem que um único som seja ouvido, é só aumentar a TV e esperar que o som venha macio, a frase
está solta como se não existissem outras ao redor; as palavras, unidas por um fio fino laço feito prata; as letras, aglutinadas para ordenar e dar lógica à sequência; os traços constroem o sinal da idéia contida na cabeça, fechada a vácuo como um pote da Tupperware - basta pressionar
para sair.

 

NO TAPE-DECK JÁ NÃO ROLA NENHUM SOM ASSIM

tristeza
ela não quer mais saber de mim
diz que não agüenta mais o meu terno chinfrim
diz que só anda com um tal pierre cardin
no tape-deck já não rola nenhum som assim.

 

SE VOCÊ PENSA QUE EU TÔ PREOCUPADO

se você pensa que eu tô preocupado
eu lhe digo, meu amigo, isso não acontece comigo
eu, que pego ônibus 7 horas da manhã sempre lotado,
toda manhã como se fosse romaria
toda manhã de tarde até o clarear do dia
toda manhã me perco em tanta filosofia.

 

SESSÃO DE CINEMA

o filme falava sobre não-sei-o-quê e eu dormi quase toda a sessão - não sei se perdi alguma coisa que valia a pena ou se o sono velado e o cheiro de cigarro eram só uma cena.

 

CASA DE FUNDO

cada quadro representa um passado que não vivi, figuras que não vi, cada quarto carrega dentro de si o peso quase funerário de formalidades e tradições antigas, que vieram com os habitantes da casa, junto com a prataria (-Quero ver brilho, hein!),
as janelas são os poros deste corpo familiar podre mas indissolúvel: os vermes vêm e se instalam, como placas de memória adicionadas a um computador, cada porta-retrato traz à tona lembranças de um passado com olheiras e violência física - um passado de choro e ranger de dentes, cada porta trancada esconde as feridas mais purulentas que podem ser carregadas/exibidas; atrás dela manifestam-se desejos de cor sépia - secretos, pessoais e intransferíveis, cada caso é um caso, nesta casa de fundo de rua-sem-saída o musgo cresce forte nas paredes que jamais apanham sol, o cheiro de túmulo resiste aos incensos, à janela-aberta-para-passar-um-ar, às ventanias pelas frestas, nada funciona, nada serve, nada presta.

voltar para o menu