Jorge Lucio de Campos
Salvador
Dali. A tentação de Santo
Antonio, 1946.
O NASCIMENTO DA POESIA
a Antonin
Artaud
1
Acordo e espero que meu corpo o
faça. Recosto-me e aguardo um olho que já nem conheço.
2
Não
há nada lá fora. Nem mesmo a chuva derramada pela tarde que há de vir.
3
Se, ao menos, eu pudesse entender o tempo. Se, ao menos, eu
pudesse atravessar a cama.
JANELA AMARELO
CÁDMIO
a Hubert Damisch
1
Um
erotismo me cerca. Na manhã de portas
descerradas, o sol tinge as barbatanas.
2
Aclamo-me,
acalmo-me, desdenho-me. Persigo-me, incorro-me, impregno-me.
3
Um
arbusto me sugere ser. Vegeto mais que
ele.
ANTROPOMETRIA
a Yves Klein
O quarto
ficava a alguns passos
do nada onde,
em atletismos
curtos, o sol
trincava as paredes.
Havia mais sombra que luz. Um semblante de cansaço que nos fez sofrer.
Ela tirou da bolsa uma navalha
e pediu-me que a cortasse. Uma estranha sensação
começou a retinir.
Conforme a lâmina agia, sua
pele tentava, em
vão, compensar
a falta de estofo.
Contudo, em
nenhum momento,
pediu-me arrego.
Já perto dos quadris, estoquei mais fundo. Antes que a
enchesse de dor, uma borboleta cruzou o ar: “Estou conseguindo!”
À medida
que a fendia, ela
mudava. Atendendo a meus caprichos, virou, de relance,
um paletó, um urinol, uma capa de chuva…
O zíper
desengatou-se e, por um instante, conheci seu
auge. Um
dedo, um
punho, um
braço inteiro
se desfez dentro dela.
Ficaram, sob as unhas,
os trapos daquele dia.
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