Jorge Lucio de Campos



Wassily Kandinsky. Pequenos prazeres, 1913.

 


PERSPECTIVA E HISTÓRIA: COMO SE FOSSE UM PREFÁCIO

Marcio Tavares d'Amaral

A leitura de Do simbólico ao virtual: A representação do espaço em Panofsky e Francastel, livro de Jorge Lucio de Campos, que o leitor fará, estou certo, com o mesmo prazer e proveito que eu, permite lançar uma visão inteligente sobre a importância que teve - tem - para o Ocidente, a relação entre o espaço, o olhar e a linguagem. Não é uma relação fortuita: antes é constitutiva; mas igualmente não é óbvia: pois o que constitui costuma, ao menos entre nós, ocidentais, permanecer longamente na sombra - até que um dia, e como se fosse de repente, um movimento mais agressivo o põe à luz, em geral, de forma obscena: como crise.

É possível que hoje - e isto significa, desde meados do século passado (afinal, um século e meio, na perspectiva da história do Ocidente, ainda merece o nome hoje) - tenhamos a sorte de viver uma dessas crises. Crise das boas, alastrante, que revira uma série de estratégias do pensamento, da linguagem e da ação - a começar pelo fato nada trivial de enunciá-las como estratégias. Um desses reviramentos é o que põe em questão a idéia da perspectiva; em questão e, de certa forma, no centro da cena, no foco da visão. E esta ob-cenidade - este vir à frente da cena do que antes ficava escondido - abre condições novas de pensar. Pensar diferentemente do que se pensava antes: assim Foucault define o trabalho. A crise contemporânea - da Modernidade, também se diz - nostrabalho, justamente: põe-nos de novo a pensar, e diferentemente.

Um prefácio deve ser a apresentação de um livro. Mas se a leitura me suscita reflexões, hei de me furtar a fazê-las, ainda que restritas ao palmo de prosa que um prefácio autoriza? Não será, ao contrário, mais respeitoso com o texto que logo se vai ler, tentar co-responder às questões que ele levanta? Se não for, desculpe-me o leitor, mas é precisamente o que vou fazer; sempre resta o recurso de saltar estas poucas páginas. Nem perde nada, que o livro mesmo está adiante, e merece ser lido independentemente do que aqui se inventa.

Aos que, porém, tiverem a pequena paciência que um prefácio impõe, gostaria de propor o seguinte: toda a história do Ocidente pode ser (parcialmente, é claro, quer dizer, com parcialidade e tomando partido) contada como a história das alterações sintáticas que as relações entre o olho, o espaço e a linguagem foram sofrendo da Grécia clássica (ao menos - mas já basta) para cá.

Temos o hábito de definir a Grécia (a Grécia é para nós um objeto quase mítico) como a inventora da teoria; da atitude teórica, se se quiser ser mais antropólogo, psicólogo, genalogista, arqueólogo ou o que for nessa linha. O que freqüentemente nos escapa é a profunda relação entre teoria e visão.

Teoria, como palavra, mas certamente também como atitude diante do mundo, provém de uma das formas gregas do verbo ver. Ser, aliás, também, e não por acaso. O mesmo se passa com idéia (idea quer dizer: forma). É todo um universo semântico extremamente importante para o que vierem, a ser a filosofia, a ciência e a arte - derivada de verbos, todos designativos de ver, que expressam a atitude de estar diante, tomar distância, perceber, reter e contar. O espaço em que algo se apresenta, o olho que percebe sua presença, a linguagem (o discurso) que apresenta o percebido - eis uma estrutura, que convém chamar sintática, definidora da atitude ocidental. Nela é que algo como uma perspectiva pode vir a ganhar um sentido semântico, um valor de verdade.

Em traços muito rápidos e esquemáticos, como quem apenas rascunha certas linhas de força sobre as quais - o livro que se vai ler, por exemplo - poderá, se quiser, pintar um quadro, podem-se imaginar (o que ainda é uma forma de ver) as seguintes três configurações.

1. Um momento grego (a duração desse momento, seu antes e depois, não vem ainda ao caso). Nele pode-se supor uma qualidade absoluta do espaço como condição primordial de tudo que é, quer dizer, de tudo que pode vir à luz numa visão. A grande sentença heraclitiana - Physis kryptestai phylein, o que se mostra de si mesmo, por si mesmo tende a esconder-se (que, em geral, se traduz: 'Natureza ama esconder-se') - bem pode ser a epígrafe desse momento. O jogo de ocultação e aparecimento define então as condições da presença do que é. O lugar do olho é o de uma tensa atenção, um cuidado, um respeito ao escondimento e ao desvelamento: alétheia, a palavra grega que depois se traduziu por verdade, é a tonalidade afetiva de uma tal atenção, de uma dis-posição desse tipo. E a linguagem, então, nos re-presenta, mas a-presenta: a dos poemas pré-socráticos, como antes a dos oráculos e a dos poemas homéricos. Fosse já a linguagem representação e o empreendimento sofístico não teria sido possível - ou seria simplesmente o que depois (anacronicamente, portanto) os metafísicos o acusaram de ser: uma indigência lógica. Pois a sentença sofística - o homem é a medida de todas as coisas, do ser das que são e do não-ser das que não são - representa um rearranjo sintático do jogo entre espaço e olho: a extrema atenção que o olho deve prestar ao escondimento/aparecimento de physis converte o olhar em juiz; este o sentido da palavra medida no texto de Protágoras (que não por acaso, aliás, chamava-se justamente Da Verdade). De uma proeminência do espaço transita-se, com os sofistas, para uma proeminência do olho. O sofisma não é mais do que uma maneira de enunciar, de forma paradoxal, a indecidibilidade dessa estrutura. O papel do pensamento metafísico foi o de introduzir no jogo um elemento que permitisse a de-cisão entre olho e espaço e cortasse o nó górdio do paradoxo sofístico.

2. Um momento metafísico, então, ou, tendo-se em vista sua expansão geográfica e sua resistência no tempo, um momento europeu. O modo que os metafísicos encontraram de superar os embaraços opostos pelos sofistas à estrutura grega da relação espaço-olho-linguagem foi construir uma espécie de proeminência dessa última, redefinindo dessa forma as relações sintáticas da própria verdade. A partir de agora, linguagem re-presenta. Valem menos a e-vidência do que se dá (espaço) e a percepção que mede (olho) do que o enunciado que conserva e retém (linguagem). Atente-se para a natureza de particípio passado da palavra 'enunciado' ; nessa forma verbal vigora o prefixo re que torna a linguagem o lugar da representação. A relação grega entre coisas e palavras (com perdão do anacronismo, mas são os termos de que dispomos, e afinal aparecem no Crátilo) precisa agora ser confirmada por nomes que, como universais, pertencem à linguagem.

Esta é a primeira figura da perspectiva: o espaço, antes absoluto, é perspectivado ao olho, mediante a linguagem. Quando essa relação, teorica e estrategicamente construída, se torna natural, mercê de sua muito longa duração, a perspectiva vem a ser a maneira natural de olhar. Não foi este um progresso linear e sem recuos. Foi primeiro preciso desvalorizar o mundo, tornar o espaço natureza, submeter a natureza ao poder produtivo (inclusive como criação divina) para finalmente ter como natural uma maneira de ver que, no teatro da história, tem tudo do artifício, da estratégia e da luta. A perspectiva renascentista (que não por acaso recorre a uma legitimação grega) consagra, como naturalidade, o esquecimento da longa batalha (onde, evidentemente, houve vencedores e vencidos, e que não se fez sem grandes desgastes - mas essa é uma outra história).

3. Vivemos agora um novo momento: chamemo-lo moderno, que talvez afinal não seja um nome de todo inadequado. Nele, que pode ter o seu começo assinalado em meados do século XIX (se for mesmo preciso assinalar assim contundentemente um começo), coisas notáveis se passam. E digo bem: passam; porque ainda não acabaram, estão por toda parte presentes. Uma delas, talvez a mais instigante, é a irrupção quase obsessiva da memória. Querer saber de onde vêm as coisas, narrá-las - ao invés de simplesmente referi-las numa descrição - passou a ser o comum. Dito de outro modo, o Ocidente moderno inventa a história como atitude básica, como modo de pensar (o pensamento, inclusive o das ciências 'duras' se historializa e relativiza), de falar (a narrativa produz um Ocidente loquaz), de agir (saber de onde vimos para saber para onde vamos): a Revolução no eixo do tempo, como necessidade do futuro; e também, por óbvio, de ver, se for verdade que na visão se concentra a essência (passe, ainda uma vez, a palavra) da experiência ocidental.

O perspectivismo é a forma - digamos, ideológica - dessa experiência de ver historicamente. E nesse sentido, em que pesem as diferenças de escola, constitui a matriz de toda arte que mereça o nome de moderna. Trata-se aqui de desnaturalizar a perspectiva, perspectivá-la por sua vez: enunciar o ponto de vista.

No período anterior, o ponto de vista não denunciado (a soberania da linguagem) permitiu ao enunciado uma evidência natural. Agora, a explicitação do ponto de vista permite denunciar a artificialidade do enunciado: o primado passa a pertencer à enunciação, ao ato que intervém, à natureza antinatural da linguagem, à vontade, ao desejo, à liberdade: momento de utopias e de vanguardas: momento também da ressaca pós-moderna.

De um espaço absoluto passou-se a um espaço relativizado ao olho por intermédio da linguagem; de uma linguagem assim tornada absoluta passou-se a uma linguagem relativizada ao olho pelo tempo, que igualmente relativiza o olho, desnaturalizando o espaço. No reino do tempo, espaço-olho-e-linguagem descobrem-se conexos e, mais uma vez, indecidíveis. As vanguardas foram uma experiência da linguagem como espaço e olho, mas não como natureza. Era preciso passar por essa experiência, tão análoga a dos sofistas, para podermos tomar essa mínima distância que nos permite contar essa história.

Mas é preciso ainda contá-la apenas como história: uma história da História - sem o que corremos de novo o risco de torná-la - à História - um Absoluto. É necessário ainda dar esta volta ao parafuso. Mas não, ainda, agora. E, certamente, não mais aqui.


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