Jorge Lucio de Campos



Francis Bacon. Três estudos para um crucifixão
(
painel central), 1962.

 


Vitam impendere amori ("Consagrar a vida ao amor") foi originalmente publicado em novembro de 1917. Num fina brochura, seis poemas de Apollinaire ilustravam oito desenhos assinados por André Rouveyre. Tratava-se da penúltima (e mais tímida) das quatro incursões poéticas implementadas em vida por esse escritor ítalo-polonês (nascido Wilhelm Apollinaris von Kostrowitzky, em Roma, em 26 de agosto de 1880, filho natural de Francisco Flugi d'Aspermont e Angelica de Kostrowitzky), espécie de patrono do cubismo e do futurismo (1) e, posteriormente, considerado por dadaístas e surrealistas o seu mais legítimo guru. Apollinaire era então, sem sombra de dúvida, um dos principais responsáveis pelas pesquisas diruptivas, então em curso por quase toda a Europa, que se encarregariam da renovação estética de uma época saturada (principalmente na França) pelos excessivos rigores e veleidades do período parnasiano-simbolista.

Esta também não era a primeira ocasião (nem seria a última) em que Apollinaire flertaria com as possibilidades poéticas da imagem. Em Le bestiaire or Le cortèje d'Orphée (1911), numa edição luxuosa, de tiragem limitada a apenas cento e vinte exemplares, trinta poemetos seus atuaram como legendas para um igual número de xilogravuras de Dufy e, dois anos antes, sua narrativa L'enchanteur pourrissant ("O encantador apodrecido") viera à luz igualmente ilustrado por outro mestre fauve (Derain). Por sua vez, o clímax de tais rivalizações com o imagético dar-se-ia com a fatura, em março de 1918, do polêmico Calligrammes, em cujo corpo a experimentação com a dupla grafia atingiu o nível 'ideal' do amálgama.

Seus predicados de poeta, no entanto, só começaram a ser efetivamente notados a partir de 1913, quando da publicação do emblemático Alcools - ainda para muitos críticos, sua opus magna. O 'estrangeiro' Apollinaire apresentava ali uma poesia germinalmente rarefeita, que sabia muito bem se valer dos atributos musicais intrínsecos ao idioma francês.(2) O desdobramento dos fatos comprovaria que ele estava mesmo fadado a exercer uma influência decisiva sobre a poesia de toda a primeira metade do século. Filiada a uma linhagem em grande parte derivada, via Verlaine, do cancioneiro lírico de Rutebeuf, sua poética, pelo menos numa fase inicial (ainda parcialmente extensível a Alcools), caracterizou-se pela intensa busca do novo no interior das potencialidades 'concretas' da tradição. Num segundo momento, iniciado com Alcools, mas definitivamente explicitado em Calligrammes - e que, fatalmente, o teria conduzido a um alargamento ainda mais conseqüente de horizontes, não fosse sua morte prematura, no mesmo ano da publicação deste último (novembro), vitimado pela gripe espanhola - entregou-se a uma cultura cada vez mais acirrada das experimentações coroada, na ocasião, pelos seus, hoje famosos, jogos gráficos (inicialmente batizados de 'ideogramas líricos').

Das alusões arcaizantes de Le bestiaire ao cultivo da simbologia da guerra em Calligrammes, passando pelas anamneses nomádicas de Alcools (cujo espírito Pascal Pia apreende com muita propriedade em 'Le vent du Rhin') (3) e o débeis entintamentos poéticos de Vitam impendere amori, alguns traços estilísticos poderiam sintetizar o imaginário apollinairiano: a) gosto pelo mítico-fabular e pela citação (já especialmente marcante na referência explícita ao arquivo lendário medieval de L'enchanteur pourrissant); b) mordacidade de têmpera rabelaisiana - usina de força de um humor ambíguo, singularmente encarnado em sua peça Les mamelles de Tirésias ("As mamas de Tirésias) de 1918; c) composição por 'colagem' ou 'agregação' (marca nitidamente oriunda de seu intimidade com o ideário vanguardista da época); d) vocação erudita, amiúde ostensiva e, em geral, orientada ao culto do raro e do curioso; e) tendência à dialetização entre o verdadeiro e o falso, assim como; f) à exaustividade temática - cf. Le onze mille vierges ou Les amours d'un hospodar ("As onze mil varas ou Os amores de um hospodar") (4) e Les exploits d'un jeune Don Juan ("As façanhas de um jovem Don Juan"), novelas erótico-pornográficas publicadas sob pseudônimo (5) em 1907.

Afora sua inegável beleza textual e apesar de sua pequena extensão, Vitam impendere amori abriga boa parte dos principais procedimentos poéticos da obra passada e futura apolineriana, sustentando com a mesma uma ininterrupta comunicação subterrânea. Embora ainda se apresente demasiadamente preso a uma camisa de força formalista (inclusive com o recurso da rima, dificuldade que somente começou a ser superada a partir de Alcools), é possível perceber em seu approach, sobretudo pelo invejável poder de concisão, a forte índole modernista de Apollinaire aqui já esboçando os primeiros passos rumo a uma vigorosa renúncia à pontuação tradicional.

Quanto a Le nouveau esprit et les poètes, trata-se uma conferência (6) proferida pelo poeta, no teatro Vieux Colombie, em fins de 1917. Nela ele reafirmou como nunca sua fama de iconoclasta (heresiarca?) - fama que lhe angariou inúmeras e violentas críticas (algumas quase acabaram em duelos) por parte de ilustres representantes (caso de Georges Duhamel) da crítica francesa instituída. Num tom amiúde coloquial, o texto espelha toda o seu gosto em épater les bourgeois, toda a sua predisposição programática de ruptura e superação frente ao passadismo das velhas tradições, considerada viável numa época francamente iluminada por utopias e convicções emancipatórias.

Por sua proximidade com a morte de Apollinaire (cerca de um ano os separam), tal 'manifesto pela modernidade' é considerado por muitos o seu legítimo testamento artístico, refletindo, como poucos, a curiosidade e a expectativa reinantes (principalmente entre artistas e poetas) em relação às novas tecnologias de comunicação. De estratégica leitura nos tempos atuais, marcadamente críticos e titubeantes diante desses mesmos valores, trata-se, como não poderia deixar de ser, de muito mais do que uma mera visão pessoal de mundo, uma - que, mesmo parecendo, por vezes, comprometida por um incômodo ufanismo - mal consegue disfarçar sua inegável vocação à afirmação de uma espiritualidade universal.

Creio ser redundante dizer que a iniciativa de retraduzi-lo (outros o fizeram com competência e brio como Paulo Hecker Filho, Hamilton Trevisan e Jamil Almansour Haddad) deveu-se à surpreendente constatação de ora ainda dispormos pouco de sua obra em nosso proprio idioma. Embora procurando ser o mais fiel possível à escrita original, reservei-me o direito de nela intervir, sempre que me pareceu conveniente fazê-lo. Foi em função disso que, relativamente a Vitam impendere amori, visando preservar a sensação rítmica, vez por outra abri mão do esquema original da métrica e das rimas, respeitando-o sempre que não o considerava problemático para o processo de transcrição. De um modo ou de outro, creio ter conseguido captar, satisfatoriamente, alguns dos atributos que tornaram Apollinaire, tanto na poesia quanto na prosa, a partir de seus respectivos momentos de estréia, esta figura única que, ainda hoje, urge reverenciar.
 

NOTAS

(1) Entre os escritos dedicados por Apollinaire à temática artística destacam-se Méditations esthétiques. Les peintres cubistes e L'antitraditon futuriste, ambos de 1913.

(2) A respeito do fascínio exercido pelo idioma francês sobre Apollinaire, o poeta francês Claude Roy, afirmou que ser poeta é sobretudo ser capaz de um certo e sábio espanto diante da linguagem... Essa surpresa diante das palavras, essa faculdade de jogar com elas, de ser um pouco enganado, um pouco vítima e, ao mesmo tempo, dominá-las, tropeçar nelas com uma deliciosa felicidade, essa é a verdadeira força do estrangeiro Apollinaire (apud Jean Rousselot, Dictionnaire de la poésie française contemporaine, Paris, Larousse, 1968, p. 13).

(3) Pascal Pia, Apollinaire, Paris, Seuil, 1995, pp. 41-53.

(4) Antigo título de certos príncipes vassalos do sultão de Constantinopla, principalmente na Moldávia e na Valáquia, alusivo, no caso, a Mony Vibescu, o protagonista da trama.

(5) Ao que parece Apollinaire publicou-as, lançando mão apenas de suas iniciais.

(6) Veio a ser publicada, pela primeira vez, em 1946 pela editora parisiense Jacques Haumont.


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