Jorge Lucio de Campos
René
Magritte. A resposta imprevista, 1933.
ARCANGELO
Uma aventura náufraga
de cor de galope
e feroz
atadura
Entre senhas
e volutas
uma vespa em soluços -
tic-tac de entrópios
Colar em
toda arte
a pleura
e o pólen
(pardais
agitados)
ENTRENEGRO
Toda cama
redonda
carimba nos
ombros
um arabesco
enorme
de cor imprecisa
Num fio de sombra
lobos engolem
o sol,
como se
pudessem tê-lo
Mas nada
é
fácil contra
um astro-rei
POEMA
Como não
me apropriar
dos lábios: solos
de
artesania?
Da substância
que
pontua os seios: leite
orquídeas e vespas
PAISAGENS
1
A bem
dizer
o homem
gordo
se enverga
e desliza
pela perna
-
torso cheio
de brumas -
uma colina
em cada
olho
2
A bem
dizer
o homem
gordo se
deita -
o dedo
coça
(aponta no
horizonte)
Persiste
na areia -
agora
sombra
ENIGMA
a Wallace Stevens
Eram dois
répteis
contra os grãos
de um deserto
de poros e arestas
O maior
me odiava
com surtos
e espinhos
- unhas,
salivas
rabos sagitais -
O outro
me amava
: seus
olhos de couro
brilhavam na noite
como os cartazes
de Las Vegas
LARGURA
Minha calamidade
festiva se comprime
nos livros
de Borges
gramofones, carrilhões
Faço que ouço as
funestas novidades -
matizes simples
de
transição discreta
(esquecida)
entre farinha,
ovos
e açúcar
no pico
dos móveis
GUME
Rouxinol morrediço
no passo da lâmina
(asas
atadas no musgo)
Noite reticulada
de total desmantelo
(traçada em berilo)
AS ESTAÇÕES DA RAZÃO
a Jonathan Barnes
1
Que a terra
flutue e a
madeira (ou
parte dela)
queira “ser”
2
Caracóis e
lesmas não
se equilibram
em água
3
Bastam naus
no oceano
(que
a sombra
se iguale à
altura)
4
Indicar as horas
(o que importa?)
Contornar o globo
em canoa
mínima
5
Entrou água
no relógio e
não há tempo
pra secar
o
tempo
PESCA
Nos lenços
faz um gesto
de aço e tinta, correnteza
Anseios justos
cavilam -
peixes resvalam
FILIGRANAS
1
O poeta
dorme –
por temer
seu sono
apressamos
o poema
2
No espelho
os olhos
são dedos
3
De resto
o olhar
prostituto
se afasta
da boca
POEMA PARALELO ÀS COXAS
a Régis Bonvicino
De bruços
a penetro -
casto
custo
ESCRITÓRIO
A noite
no escritório
era assim:
uma fricção
leitosa nos
cantos
Sombras deitadas -
o branco
do poema
colava nas folhas
de papel
Insetos varriam
os lados e, depois
iam embora
BUKOWSKI
A democracia
de pó
constrange a ruptura
Um processo
de pó
persegue a urgência
Um delírio
de pó
um país
cotidiano
ELEGIA
a Gottfried Benn
Papai morreu sufocado
por um
travesseiro
- ironicamente
transpassei seu peito
com agulhas
mágicas
(com
cordeizinhos
seccionei-lhe artérias -
uma a uma)
Confesso que
ainda
o invejei ao ajeitar
as fatias na maleta
burocática
Havia posto na boca
uma flor que agora
mais parece um
cachimbo escarlate
Como eu
ri
no cumprir
da tarefa
ENQUADRAMENTO
1
Dentro proponho chá
depois torrada,
manteiga
sala quente
e fundida
e não
há opinião
oposta à minha
que insinue
o instrumento
desvalido -
atenuante óbice
-
redecoro de mundos
cordéis e bolsas
2
A pauta
e o virtuose
perderão narcótico -
a chaminé
soltando
fumo recordará
a lenha
tosca
(o ardor
do lume)
a essa altura
o devaneio
3
Ao fundo
proponho o arrolhar
de desmedidas senhoras
: orelhas
de abano
narizes aduncos
(os tetos
viverão
até lá)
4
Hei de propor
torradas, uma
sala de manteiga
ainda que
todos
estejam rançosos
e na obliqüidade
do ranço
nada disso
alcancem
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