Jorge Lucio de Campos



Paul Klee. Baía com veleiros, 1937.

 


Se a atual poesia brasileira, de fato, carece de um perfil mais definido e contundente, não resta dúvida de que sua fecundidade é inequívoca. Nos últimos dez anos vários nomes (alguns de grande valor) tem oferecido  novas perspectivas de dicção - revisionistas ou não, diruptoras ou não - por todos os cantos do país. Editoras mais atiradas, como a paulista Iluminuras e a carioca Sette Letras, tem se encarregado de escoar suas águas caudalosas (porque há tempos represadas) e a impressão que fica é que há ainda muito por vir e isso é ótimo.

Outro indício desse fenômeno auspicioso tem sido a organização, cada vez mais recorrente, de antologias que, ao serem estabelecidas e lançadas em bom ritmo tanto aqui quanto lá fora (França e Estados Unidos, por exemplo), não só coroam, à sua maneira, a excelência da poesia brasileira em seu conjunto, como também apontam para o reconhecimento do talento de nossas últimas gerações.

A iniciativa sempre dinâmica do romancista e crítico literário Assis Brasil se revela um importante passo adicional nessa direção. Um que prima por seu fôlego intrínseco: rastrear, regionalmente, a nossa melhor poesia ao longo do presente século. Foram até agora contemplados, nesse sentido, em seis robustos volumes (com cerca de trezentas páginas cada) os estados do Maranhão, Piauí, Ceará, Goiás, Rio Grande do Norte e Rio de Janeiro, sendo pelo menos outros dois já se encontram a caminho: Amazonas e Sergipe. Assis Brasil, além de ser o responsável pela organização propriamente dita da Coleção, anota e introduz histórica e criticamente cada um dos volumes.

Cada um deles arregimenta cerca de sessenta autores que, entre nomes mais ou menos conhecidos, são ordenados cronologicamente (a referência é sempre a data de nascimento do poeta em questão) e devidamente 'apresentados' e comentados pelo organizador. O arco estilístico coberto pela antologia é dos mais satisfatórios - de fins do século XIX à presente década - proporcionando assim aos leitores uma amostragem bastante adequada das várias dobras estéticas por que passou nossa produção neste século. Já o número de títulos selecionados normalmente varia entre dois e três por autor, arrematando cada antologia a listagem completa das obras de cada um deles.

No que tange aos 'contemporâneos' (aqueles poetas cuja obra começou a eclodir nos últimos vinte anos, ou seja, ao longo das décadas de oitenta e noventa), no volume dedicado à poesia maranhense, destaque para a metatextualidade in progress de 'As damas negras em noites de núpcias', de Alberico Carneiro, ("(...) talvez um poema seja/simples poeira de palavras/projetadas de pessoas/imprimidas como trevas/bem no coração da névoa/que acaso num lance de dedos e dados/como silhuetas que se projetam/como penumbra esfumada/que o acaso não abolirá (...)") e para as imagens semi-expostas de 'As indefinidas palavras', de Luís Inácio Araújo, ("Qualquer palavra que eu te diga ou te silencie/é tão sem sentido - para o meu poema que é só bruma/voz muda esferográfica:/e o que sobre é esse silêncio pesando sobre os corpos,/esse chumbo,/o exaurir do carbono,/o vão dos corpos.(...)").

Já no dedicado à poesia piauiense, destaque para o lirismo compassado de Durvalino Filho em 'Quem mais te viu menos viu" ("Se há no céu, o poço azul do firmamento,/Alguma estrela mais deserta que esse fado;/Se existe um astro de tristezas mais pesado/- Não há na terra, num vivente, mais tormento.//Quem mais te viu menos viu todo esse tempo (...)") e para o laconismo espesso de Elias Paz e Silva (cf. 'Dobaliana', "lembrança de curral/na tarde oval//feixe de palavras/sobre o verão de arder//ao sol seca o tempo//chove o silêncio/na cidade infante").

No dedicado à poesia cearense, destaque para a eloqüência muda de 'Relógio', de Rogaciano Leite Filho ("No tic-tac do tempo/o mundo passa./Presa entre cordas/e correntes, /a mente se cala./E a vida passa. Sofrendo e morrendo/entre canhões e balas/o sangue se coalha./E o tempo vai./Correndo com fome/entre muros altos e duros/o homem se perde./Mas, a vida passa.") e a sutil tecitura de 'Resíduos' ("a lágrima é um ápice/a réstia um âmbito//a morte é um ritmo/o corpo uma oferenda//o beijo é uma núpcia/efêmera") e 'Minúcia' ("o vento/arranca sussurros da erva//livre de sombra/e ritmo/a gota/cárcere de luz/parte-se ao meio"), de Cândido Rolim.

No dedicado à poesia goiana, destaque para a referencialidade irônica de Edival Lourenço em 'Adão redivivo' ("quem me dera/na casa & jardim do édem/com mesa farta e camassutra/feito um quasar consorte/abarrotar minha tenda de estrelas/e me nutrir de costelassãs/ao ponto/com sal da terra/& pimenta do reino eterno") e 'Da condição de estar ' ("(...) gosto de estar /mente curtindo o corpo/lento envelhecer/rugas distraídas no espelho/de um narciso domado/e a vida vazando/gota após gota/agualém de água/de um vaso trincado (...)"), assim como para 'Intento', de Ubirajara Galli ("O quepor trás/do gesto,/quando o concreto/do intento/está à sombra das mãos/que se fecham,/revelando o medo/de dar o que se pede,/quando o que se pede/é meia parte dada/por si (...)").

No dedicado à poesia fluminense, destaque para o lirismo construído de 'Persistência do sonho', de Paulo Henriques Britto ("(...) Nesse espaço sem medida/- ou tempo incomensurável -/o que de ser chegou perto/sem chegar a ser de fato/se cristaliza na forma/desconsolada do nunca/porém - por obra do quase - permanece aquém do nada (...)", e para a rarefação de 'Vento', de Carlito Azevedo, ("(...) Um falsete fica reverberando sem querer morrer./Dos cabelos desgrenhados de meu filho/se desprega, ao vento, como um/sorriso, como um relâmpago,/um pensamento triste.").

No dedicado à poesia norte-rio-grandense, destaque para a rítmica de 'Signos', de Nivaldete Ferreira ("É preciso/Que o açúcar dos signos/arda,//Mel fervente que cura,//Que nenhum governo entre nós/Se imprima,/sarda//Sobre a pele pura,/ar da//Câmara de usura/Em que me finjo mínima/Na paixão e/parda.") e para a alusividade epidérmica de 'A cidade e o poeta', de Aécio Cândido ("cheguei arrastando um deserto/e duas ou três folhas de esperança/decompostas//a cidade me recebeu/com uma lambida putrefacta/e me alisou com risos de loba demente/- rômulo sem rumo, enjeitado me senti/sem remo//o hálito da idade despejava labaredas nos meus ossos.").

Veredas, 33 (setembro).


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