Jorge Lucio de Campos



René Magritte. Os amantes, 1928.

 


 

TAUROMAQUIA

 

a Pablo Picasso

 

              apenas te vi no velo da noite

              a luz difusa entre os cabelos

                cediça a quilha dos lábios

 

                      gris turva clara

                  com estrias melodias

             sopro em teu cérebro-areia

 

                tua vo

                          x

          de lâminas finas

                                       (rebordo lunar)

a chuva caindo

envergada

                  o

                      tempo

                                   vindo

                num lance

                                   de

                   sombras

                                   passando

                    por isso

                                   num gesto

                     deitado

                                   noite

                   esvaindo

                                  comum

                                                lingote

                                  mancha

                                                escoando

                                                                  devagar

 

 

 

CASULO

 

Ferver o óleo

em labirintos

veronais

 

Tirar do peito

um coração

de favos

 

 

 

VIA LÁCTEA

 

Tela da noite

: lua-esfera que

se esconde

 

Supor a

chuva que

não cai?

 

 

 

GRATUIDADE

 

A pequena esfinge

desloca as horas -

 

liga arbusto e campo

com espirais -

 

basta colhê-la

 

(vigiá-la com

toques de brisa)

 

Devolver intátil

ao ourives as

 

pernas do troféu

 

 

 

ALEGORIA

 

O fascínio

que nutro

por leiteiros

traduz-se

em garrafas

de iogurte

(bolsas

moles) -

 

o resto é

passado

infeliz -

 

alhures

(talvez)

outros

fascínios

 

 

 

HORROR VACUI

 

Digamos que

um abriu mão

 

de viver o resto

(o outro não

 

se arrependeu

a tempo)

 

 

 

A MATEMÁTICA DOS MELÕES

 

a Markus Lüperz

 

dias em que um astrônomo nada pode fazer: a luneta ficará na estante. Em outros, pregar o olho é tarefa árdua. Cultivar a astronomia implica um velho receio: o de que a noite, ofendida com a indiscrição, queira castigá-lo.

Convicto de que o firmamento, de fato, possa e venha puni-lo, nosso homem não glosará a poesia celeste. As horas se escoarão, inutilmente. Ele, sem alternativa, se porá à espera.

muito a ciência não evolui. Para o alívio geral do universo.

 

 

 

DISFARCE CHINÊS

 

Na cidade de Kan-Sou, província de Yun-Kang, as gangues locais raptaram o marido da Sra. K’i e, graças a uma antiga desavença, o devolveram degolado à família.

Durante dias, a viúva procurou a parte que faltava. Penalizado, um exímio nadador da região explorou as águas barrentas do rio Tchong, afluente do Louan-Yan, responsável pela irrigação de 3/4 dos arrozais de Kan-Sou.

Certa vez, recolheu num saco vinte e oito cabeças. Em tempo: ali não estava a do infeliz Sr. K’i.

 

 

 

DISFARCE CHINÊS (Segunda versão)

 

A revolta acompanhou o vento que veio sem pressa e, sem pressa, espalhou-se entre os montes humanos.

Por todos os lados, vestígios marcados de uma juventude esquecida, de um doçura retida no peito.

Não houve submissão ou dissidência: os montes humanos formaram montanhas e os vestígios marcados ficaram no fundo.

Virarão cordilheiras e assim será - eternamente - essas coisas impossíveis de definir.   

 


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