Jorge Lucio de Campos
Francis Bacon. Jato d'água, 1988.
Capturar visualmente o mundo e narrá-lo, sob este ponto de vista, ontologicamente (mesmo que apenas sob a forma de um registro gratuito de seus aspectos óbvios e cotidianos) tem sido um dos desejos mais arraigados do homem ocidental. Tal anseio 'óptico' de representação conduziu, em termos imagéticos, a uma autêntica 'quebra' do, até então prestigiado, ato pictórico, ao ser implementado, em pleno século XIX, o agenciamento técnico final do dispositivo fotográfico. Este fato se deveu a pioneiros do naipe de Thomas Wedgwood, Joseph N. Niepce,
Louis J. M. Daguerre, Hippolyte Bayard e William H. F. Talbot - para citar apenas os mais bem-sucedidos, dentro de uma legião de engenhosos pretendentes - precisamente em agosto de 1839, quando o governo francês comprou a patente do daguerreótipo, disponibilizando-o para o uso público, já com o nome 'fotografia' (híbrido dos termos gregos phos, 'luz' e graphein, 'escrever', literalmente significando 'escrita - ou registro - luminosa') - sugerido, à época,
por Sir John Herschel.
O referido agenciamento simplesmente arrematava uma série de esforços, remissíveis à arquetípica camera obscura, tão cara aos renascentistas, em não só dar conta de uma representação mais 'pura' do real, quanto em disseminá-la e partilhá-la em nome da racionalidade científica triunfante ou, pelo menos, para a fruição simbólica das classes que, então agentes oficiais do poder, nela investiam. Autêntica interface do técnico e do estético, do jogo duro da representação e da maleabilidade conceitual crítico-moderna, a fotografia tem se constituído em um domínio, sem dúvida, privilegiado - principalmente se levarmos em conta o fato de ela não poder apelar, como pôde o cinema, para a codificação fácil do binômio narrativa ficcional-movimento no tempo - no que tange a uma melhor elucidação da sensibilidade contemporânea.
No entanto, e apesar disso, são ainda relativamente poucas, em nosso idioma, as incursões teóricas de qualidade, no que diz respeito à linguagem fotográfica e seu entorno poético. A exemplo dos ensaios, por aqui já traduzidos, de Philippe Dubois (O ato fotográfico) e de Jean-Marie Schaeffer (A imagem precária: Sobre o dispositivo fotográfico), O surrealismo e a estética fotográfica, de Fernando Braune, persegue um novo approach dessa ordem, revelando-se enriquecedor não só por sua tentativa de (re)discussão dos aspectos intrínsecos da fotografia, como também por sua proposta de elucidação de um certo elemento de 'surrealidade' impregnante do olhar fotográfico.
Se a principal percalço de uma reflexão incisiva sobre a fotografia ainda repousa sobre o cotejamento, em tese improvável desde Platão, entre as ordens lógico-metafisicamente excludentes da representação-simulação e da
objetividade-verdade, uma análise interfaceante, como a aqui fomentada, do projeto surrealista - no caso, pela caudalosidade de um de Chirico, um Ernst, um Miró ou um Duchamp - em sua intencionalidade "de afrontamento
da passividade, do enfado e da alienação impostos pela racionalidade moderna", decerto nos conduz a um instigante sobrevôo emancipatório. Urge acrescentar que a qualidade visual de tal sobrevôo jamais deixa de ser-nos garantida pelos recortes vigorantes com que Fernando trata de municionar nossa leitura e que, indo, entre outros, da dicção cega das lentes de Evgen Bavcar ao voyeurismo
paralisante do estranho de Diane Arbus, balizam com acuidade todo o percurso.
In: BRAUNE,
F. O surrealismo e a estética fotográfica. Rio de Janeiro: 7Letras, 2000.
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