Jorge Lucio de Campos



Paul Klee. O homem marcado, 1935.

 


Paulo Henriques Britto não é desses poetas íntimos da velocidade e da vertigem. Ao contrário, sua estratégia privilegia a precipitação (que eu chamaria de 'estalagmítica' pois ser mais afeita à sobreposição que ao alongamento) ou antes a reconcepção, própria das fainas melhor conduzidas às expensas do tempo, a passo igual, com a paciência de um velho relojoeiro. Sua poesia tampouco se destaca pela rítmica (o que não implica, absolutamente, a ausência de um contínuo esforço de aprimoramento nesse sentido). A grande usina que a alimenta parecer ser mesmo a pausa, o fôlego, a construção pausada do fôlego

Aos quarenta e cinco anos de idade, Trovar claro é a sua terceira coletânea (antes vieram Liturgia da matéria, 1982, e Mínima lírica, 1989). Como os próprios títulos indicam, trata-se de uma dicção - contradizendo, sob este aspecto, como muito bem lembrou Italo Moriconi, no texto de apresentação desta última, o ímpeto ready-made da maioria de seus coetâneos da geração contracultural setentista - muito mais afeita ao fascínio do íntimo e do reflexivo, a um remoer repertorial em torno de redes simbólicas.

Para os que, por acaso, estranhem sua recorrente opção pelos moldes (métrico e rímico), cabe dizer que, embora assumido cultivador da forma-soneto, Paulo Henriques dribla com inventividade e sutileza à hoje tão execrada ameaça da 'limitação dos quatorze versos'. Sob este aspecto, um pequeno ensaio de Augusto Massi chama atenção, para o esgarçamento temático ou "mescla estilística entre forma severa e prosaísmo" que funciona como torre de força para que ele faça de sua poesia algo vital sem nunca precisar abrir mão totalmente do arquetípico.

Por outro lado, tal polarização nunca se comporta com um ponto de chegada. Creio ser mais correto concebê-la com um ponto de partida que, ininterruptamente tensionada por um sentimento de ironia diante das coisas do mundo (e por que não dizer da própria experiência quente da subjetividade), não se presta nunca à conclusão. Esse detalhe, não raro bastante sutil na poesia de Paulo Henriques, o arregimenta numa estirpe das mais valiosas (isso em função das dificuldades intrínsecas à boa consecução desse projeto): a dos poetas reconstrutivos.

Trovar claro possui (e mantém) a mesma inconfundível (por que não dizer irresistível?) vocação metalingüística dos livros anteriores. Seus poemas remoem a si mesmos em interrogações e contra-interrogações que os mantém sempre tensos e acesos. Ali poeta e poema se interrogam e avaliam: "para que servimos, senão para ser nada?" Diante dessas tantas necessárias (e providenciais) incertezas discursivas: "o mundo (no poema) vira um caos de músculo e metal" (cf. 'Sete estudos para a mão esquerda', 'V').

Tradutor-poeta acostumado a cultivar a forma em sua busca de uma leitura aprimorante, poeta-tradutor aberto ao cruzamento direcional e à abertura sensitiva, Paulo Henriques se deixa amiúde seduzir, como um bom trovador après la lettre, por determinados temas. Destacaria, entre eles, o do impasse criativo, brilhantemente conduzido ao longo de Trovar claro, como no título de abertura (a primeira das 'Três peças circences') que afirma que "a gososa vertigem dos começos - /esse friozinho bom no estômago - /aqui encontra lastro, ainda que tênue,/na realidade tão incômoda".

Se toda obra já nasce morta em suas pretensões (e o artista só se dá conta disso, por vezes, bem depois), se diante do sal da realidade só nos resta a ilusão da epifania (a poesia é doce), se como afirma o primeiro dos 'Sete ensaios para a mão esquerda', "existe um rumo que as palavras tomam/como se mão alguma as desenhasse/na branca expectativa o papel", Trovar claro cumpre o seu papel de protelação da dor da linguagem e, ao reafirmar o talento de seu autor, marca um novo momento de efemeridade, beleza e celebração.  

O Globo, 6/12/97.


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