Jorge Lucio de Campos
Paul Klee. Insula dulcamara, 1938.
Um
lançamento de inequívoca relevância esse O começo da busca, ora incluído
na Coleção Ensaios Transversais da Editora Escrituras. Trata-se de uma
razoavelmente extensa e, decerto, criteriosa antologia organizada pelo poeta,
ensaísta, tradutor e editor Floriano Martins - um nome que vem se destacando
tanto por um estudo, caracterizado pela atenção e pelo rigor de suas capturas
conceituais, da literatura hispano-americana contemporânea, quanto por sua
preciosa divulgação desta em outros âmbitos. Aqui Floriano não apenas aponta,
mas também expõe e devassa - em muito nos auxiliando a conhecer melhor aqui, no
Brasil, o trabalho de poetas que, mais do que ajudarem a sedimentar na América
Latina as matrizes estéticas do emblemático movimento surrealista francês,
intencionalmente as abrigaram e reinterpretaram, arriscando semeá-las (não só
difundi-las) para além do alcance intermitente de nossos próprios ventos
brandos - ao longo dos últimos dois terços do século XX.
Mediante um vôo rasante que libera a descrição de um belo mapa, a antologia permite ao leitor brasileiro que derive por um pequeno-embora-vasto território cujos limites se expandem dos versos do argentino Aldo Pellegrini (1903-73)
até os confins dos do colombiano Raúl Henao, passando pelos dos peruanos César Moro (1903-56) e Emilio Adolfo
Westphalen (1911-2001), do também argentino Enrique Molina (1910-96), do mexicano Octavio Paz (1914-98), dos chilenos Enrique
Gómez-Correa (1915-95) e Ludwig Zeller (n. 1927), dos venezuelanos Juan Sánchez
Peláez (n. 1922) e Juan Calzadilla (n. 1931) e dos nossos Roberto Piva (n. 1937) e Sergio Lima (n. 1939).
A exposição se apresenta distribuída em três grandes partes. Na primeira delas, Floriano exercita seus dons de crítico literário em um vigoroso e paciente estudo introdutório - repleto de anotações esclarecedoras sobre o percurso histórico do acontecimento poético de inspiração surrealista por estas paragens, ao mesmo tempo que destila observações sempre pertinentes acerca de suas filigranas, digamos, 'circunstanciais'. A segunda parte é composta pela antologia propriamente dita onde são disponibilizados para o leitor brasileiro dez poemas de cada um dos doze escritores supracitados (com destaque, a meu ver, para "No fundo da manhã", de Pellegrini; "Amo a raiva de perder-te", de Moro; "O que fui surge às vezes", de Molina; "Uma árvore se ela até...", de Westphalen; "Paisagem", de Paz; "A mão enluvada", de Gómez-Correa;
"Mitologia da cidade e do mar", de Peláez; "Dois escorpiões em uma garrafa", de Zeller; "Do esquecimento", de Calzadilla; "Meteoro", de Piva; "A sala do encontro", de Lima; e "A contemplação", de Henao). A terceira parte, intitulada Amparo crítico, reúne depoimentos e entrevistas - também muito esclarecedores - concedidos pelo crítico espanhol Ángel Pariente e pelo poeta argentino Francisco Madariaga, assim como por Piva, Molina e Lima.
Porém o que, em verdade, ali se alude e favorece uma formidável potência de extração - daí a inequívoca relevância da antologia a que me referi no início - é um sentimento intenso de vontade-de-vida, invocada, o tempo todo, por uma efusão-fusão de erotismos vários, por uma química precária de misticismo e consciência simbólica, por uma constante tensão de sentidos entre Conceito e Figura, por um estado de resiliência do dado ideológico - imbatível em seus saltos metafóricos - por um esgotamento da hipótese do delírio na carne do mundo e, quem sabe, por uma paixão mais do que explícita, arquetípica - típica de quem é poeta - pela possibilidade de revir em sonho os devires insuspeitos do que é.
[email protected]