Jorge Lucio de Campos



Wassily Kandinsky. Composição IV, 1911.

 


PREFÁCIO A SPECULUM

Carlito Azevedo

Pontua aqui e ali Speculum, o novo livro de Jorge Lucio de Campos, um sentimento de náusea e revolta - "sinto nojo/dessas noites quentes", "je vomis dans un lavabo", "da vida espero pouco: atear fogo as vestes" - que surpreende num autor que costuma primar pela quantidade (e qualidade) de suas referências eróticas e pictóricas, referências essas mais comumente ligadas à escrita do prazer, fisico e intelectual, que ao discurso engajado, a uma poesia mais celebratória que de desencanto.

Se em Arcangelo, o belo livro de estréia de Jorge Lucio, esta aparente contradição se insinuava, o grande mérito do novo livro consiste justamente - ao mostrar-nos uma outra face do trabalho do artista - em oferecer uma nova dimensão do leitura à sua obra que pode, penso, esclarecer um pouco o problema.

Leiamos, por exemplo, na epígrafe do primeiro livro, a famosa passagem de Borges onde se diz que espelhos são abomináveis por multiplicarem a humanidade. Depois leiamos ( em Speculum) o poema "O império das luzes":"Tenho um curioso amigo. Os espelhos insistem em negá-lo". Entre o abominável da proliferação e o não menos abominável da supressão, o que surge é a possibilidade de ler-se de outro modo aquelas mesmas referências eróticas e pictóricas agora elevadas a ingredientes principais de uma alquimia poética (cabe lembrar que Jorge Lucio é um estudioso dos mais sérios sobre artes plásticas, autor de diversos trabalhos sobre pintura, o que situá-lo-ia na família de grandes poetas como John Ashberry, Michel Butor, Marcelyn Pleynet, para os quais a derivação para a pintura é mais importante que a derivação para a música. concordando-se que poesia, pintura e música são manifestações diversas de um mesmo sublime, ou sublimado).

Em Jorge Lucio, se eros tende a ser o efeito proliferador, gerador ("tu, em cima, seios cheios//de perdizes"), pictura tende a ser o efeito supressor, a arte que mata a vida, que a "congela" (como no belíssimo e autodestrutivo "Praga", sintomaticamente dedicado a Franz Kafka: "foi por que me/depositei no quarto/abarrotado de lixo").

está o fundo do pessimismo de Jorge Lucio: como os dois répteis do poema "Enigma" - em Arcangelo -, mais do que protagonistas, é como antagonistas que nos são mostrados eros e pictura`, antagonistas de um "romance" fundado no combate entre gerar e destruir. Seu pessimismo e sua revolta, tingindo com sobretons de nojo e náusea todo o colorismo possível das referências ao universo do corpo e da arte, são o correlato intelectual da sensação de fracasso em se unir arte e vida. Afinal de contas, esta grande utopia que incendiou corações e mentes vanguardistas, surrealistas, beats, marginais e outras, encontrar-se-ia - definitivamente - enterrada?

Constatar tal antagonismo, e dá-lo a ver com beleza, não é, contudo, o menor mérito do poeta. Aqui parece começar "outra aventura náufraga"... Se, para além da sensação de pessimismo, Speculum pode ser lido com prazer, é porque seu autor tem idéias, é coerente com elas e, acima de tudo, incrivelmente talentoso ao expô-las...


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