Jorge Lucio de Campos



Wassily Kandinsky. Composição IX, 1936.

 


LÓGOS E MELANCHOLIA

" sei dizer trevas" - Ingeborg Bachmann

Todos sabemos a ferida que os fantamas românticos abriram em nossos peitos. É nesta fenda que parte de Hölderlin: "Mas onde está o perigo, nasce/Também o que salva". É esse caminho de todos os caminhos em Hölderlin que levou Nietzsche a redescobrir a dialética do retorno sem fim. E o que, certamente, foi a não pequena verdade de sua obra: a negação da filosofia platônica. Dessa forma conseguiu, dois mil anos depois, a reconciliação da filosofia com a poesia e a destituição da polícia platônica das artes. Inaugurando assim uma methéxis entre lógos e melancholia, que marcou o discurso filosófico da modernidade. Poesia-filosófica, filosofia-poética no melhor sentido benjaminiano, adorniano, bachelardiano, barthesiano, etc. (Melancolia = melas + kholé = bílis, mal - bílis negra, mal negro). A melancolia estava, na Antiguidade, associada a Saturno. Saturno representava o deus que girava eternamente em torno da Terra e voltava sempre ao mesmo ponto de partida. Saturno era, portanto, o deus do eterno retorno e, mais tarde, passou a ser também o deus da melancolia.

Para Aristóteles, a filosofia se resumia ao ato puro de pensar o pensamento, ou ao pensamento que se pensava a si mesmo. Depois de Hegel, toda a filosofia que interessa se defrontou com a questão da impossibilidade de pensar o pensamento. Sendo uma dialeta da negatividade, Adorno exprimiu-se, em uma de suas aulas de 1963, sobre esta questão de forma definitiva: "Propriamente falando, só se pode filosofar, em geral, quando, com a consciência de sua impossibilidade, tenta-se, não obstante, expressar-se o inexpressável. Aquele que capitula ante isto, que não começa o impossível com a consciência de sua impossibilidade, melhor será que afaste suas mãos deste ofício precário".

Do mesmo modo, podemos dizer que toda literatura que interessa depois de Baudelaire é uma luta com a impossibilidade do ato de escrever. Mas que não pode capitular diante deste imperativo: ser paixão e dor do "eterno sim do Ser". É neste contexto que podemos situar o tonos deste A dor da linguagem, de Jorge Lucio de Campos, quando ele nos diz no poema "As férias de Hegel":

"Vejo-me e anoitece/no que vejo -/se me tiram lascas e/minhas folhas caem/Se tudo digo no/metal pintado em/que me sinto - eu/mesmo sem vento/e de novo, em/queda rubra/desde o início".

Sente-se já aí o sopro da acedia saturniana. Porém este poema é dedicado a René Magritte, pintor surrealista, que tem um quadro com o mesmo título.

A poesia de Campos tem uma relação muito significativa com a imagem plástica (como também a poesia de Carlito Azevedo), bastando ver as dedicatórias de seus poemas, onde comparecem muitos artistas ligados às artes visuais. É este aspecto que estrutura o lógos ou razão dos poemas, onde temos uma intensidade fanopaica que articula o próprio índice semântico dos versos como, por exemplo, em "O mistério de Isidore Ducasse" dedicado a Man Ray:

"Devo-lhe a alma mais/do que um vulto/em becos que se agitam -/às vezes tremo de prazer/na voltagem que não pára/de tornar-se o mais/infame dos enigmas; a/que devagar me rendo/pra onde quer me/olhe - eis que me digo/e curvo sob um halo/de opalas desdentadas".

Há uma emoção velada que não se desnuda, mas há uma tensão que se revela e se inscreve na constância de um sistema cortado por duas linguagens. Uma verbal, que é a da própria poesia; e uma plástica, que é a da busca de um eidos ou representação pictórica que se propõe a nós como os enigmas lautréamontianos: "Belo como o encontro fortuito de um guarda-chuva e uma máquina de costura sobre uma mesa de dissecação". Do mesmo modo, cumpre ressaltar uma ausência de música, que nos parece intencional, já que o lógos do poema se dá através da representação imagética levando sua poiésis a prescindir da intenção melopaica. A linguagem atinge aqui a função estética proposta por Jacobson inserindo Campos no que podemos denominar uma "poética de câmara", acentuada por uma dicção iluminada na busca de um indelével território poético, aproximando-o dos poetas alemães Ingeborg Bachmann (Gestundetzeit) e Reine Kunze (Sensible Weg e Auf eigene hoffnung). Podemos incluir neste território poético outros poetas desta geração, tais como: Paulo Henriques Britto, Nelson Ascher, Carlito Azevedo, Alberto Pucheu, Angela Melim, Mércia Pessoa, Lu Menezes e Rita Espechit.

Mas há, como frisamos anteriormente, neste século, toda uma linhagem de poetas que procuraram exprimir este mal-estar da linguagem como expressão de um mundo em ruínas onde todos os valores humanos foram aniquilados. Basta pensarmos em Kafka, Artaud e Beckett. Para o primeiro, o sentido do mundo é indecifrável, para o segundo, nem pelo desespero da linguagem, se consegue atingir o sentido do mundo e, para o terceiro, o mundo o perdeu completamente. Temos, portanto, neste A dor da linguagem, de Jorge Lucio de Campos, a expressão da dor do dizer, mas também da dor do não-dito e, de forma talvez redundante e, de certo modo, mais radical, a dor do ato maldito de nomear. Mas retomando Mallarmé, poderíamos dizer que, na literatura pelo menos, a dor existe para acabar em livro.


APRESENTAÇÃO DE À MANEIRA NEGRA 

À maneira negra de Jorge Lucio de Campos elege a transitoriedade, a passagem, como o lugar constitutivo de uma poiesis das coisas. Aposta tudo na astúcia metafísica da palavra que surpreende as coisas através das suas transparências; eis a sua unica determinação. Nada é único, nada é singular, apenas a palavra com seu corte transversal estruturado na representação do poema. Nenhuma paisagem, nenhum estado d'alma. Apenas as coisas na sua aflitiva insularidade: "eis que nada põe/a plaina das horas/revôo que evola/dardos ao sol".

Uma linguagem que pede para ser decifrada, e que ausculta o silencio; que parece querer dizer que todo poema acabado permanece no inacabado, e que toda leitura atenta o refaz numa alegoria infinita. Ou que todo poema é apenas uma fratura do silêncio para que as palavras possam reinstaurar o domínio da quietude:"Ímpio torvo sol/- maior poente/que em si mesmo/(meio-espesso)/silencia".

Há neste À maneira negra uma seca economia do discurso poético, refratário a todo desperdício que lembra as "mirlitonadas" beckettianas: "Surrada a noite -/de trapos e ciclones/- inábil pra soprar/o dia".

Aqui toda duração fica em suspenso. O tempo é uma repetição atroz, tudo é reduzido a ecos de asperezas; estamos diante de reptos cristalizados além da palavra e (quase) pra do grito. 

Carlos Lima


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