Jorge Lucio de Campos
Paul
Klee. Ab ovo, 1917.
Após
uma estréia auspiciosa, em 1991, com Os dias gagos (texto que considero,
sem medo de errar, o melhor entre os 'inaugurais' que tive, ultimamente, a
oportunidade de conhecer), Claudia Roquette-Pinto - a exemplo do que já fizera
com Saxífraga (1993) - se reafirma, agora com Zona de sombra,
como uma das três ou quatro vozes mais maduras da poesia brasileira recente.
Segundo o prefaciador Régis Bonvicino, "neste novo trabalho, Claudia aprofunda(ria) a coesão e a densidade da(s) coletâneas anterior(es): coesão no sentido de partes intimamente ligadas, mas também no de intimidade com as palavras, com a composição e com a intuição, qualidade fundamental que a distingu(iria) de quase todos os seus pares". Já elogiada antes (e com justiça) por sua "rica imagística e musicalidade infalível" e capacidade de "isolar os objetos de seu contexto original, que os banaliza(ria), para observá-los (e dá-los a ver) em sua inteira estranheza, coisa em si" (o que decerto a aproximaria do objetivismo de
William Carlos Williams), a produção de Claudia surpreende pela regularidade e consistência - atributos invejáveis para uma dicção 'ainda-em-busca' (como se todo bom poeta assim não fosse em função de sua permanente busca do que, estando em nós, estaria, contudo, fora de nosso alcance!).
Claudia
não me parece, de fato, dada à oscilação dos altos e baixos, dos grandes e pequenos momentos. Sua poesia funciona na homogeneidade do synolon, na adequação conjunta entre o 'dizer' e o 'como-dizer'. Diferentemente de muitos poetas que, embora tendo o que dizer, naufragam, por mera gagueira, ao tentarem fazê-lo, e de alguns outros que, metalingüisticamente, mal disfarçam sua franca carência de imaginário, Cláudia constrói poemas que são como campos de forças onde coabitam os traços de uma mesma ordem impossível. Em seu jogo de luz e sombra, reflui um magma de inegável matiz, pura medida de potência, híbrido de caos e cosmos, flagrados por um estilo que, embora emergente enquanto tônus profundo, pede ser prospectado como rosto inconfundível.
Sua poesia - a meu ver, cada vez mais devedora da arquetipia mooriana - se
assemelha pouco com a da maioria de seus coetâneos, normalmente íntima dos paroxismos. Ao contrário, cada poema de Cláudia (a exemplo dos de René Char) dá a nítida impressão de sempre correr no mesmo sentido - como a correnteza lisa de um rio cujo único desígnio é o desagüe.
Agradam-me,
particularmente, em Zona de sombra, por sua mestria paratática, ritmo
interno, economia de meios, sonoridade e belas imagens: 'A caminho'
("braçando no lodo, sigo,/às escuras,/a mão nua abrindo o fio/ (começa
comigo) a/costura invisível/do rio"), 'Cadeira em Myconos' ("ao
branco contíguo/da parede, hauri-la/como figura: literal/(modo-de-éden)
nua/entre lençóis de cal" e "noiva muda em cendais de secagem
rápida"), 'Cinco peças para silêncio' ("sem que a pétala da água
enrugasse/vento soprando de dentro/do vento, a resistir-se" e "um
faça-/se-a-luz que decifre/o rosto por trás da grimaça,/o desenlace do
eclipse") e 'A extração dos dias' ("o olho tonto do gerânio/nuvens
cegas, às manadas").
O Globo, 21/6/97.
[email protected]