Jorge Lucio de Campos



Wassily Kandinsky. Composição V, 1911.

 


ESTUDOS PARA VOZ E SILÊNCIO

Claudio Daniel

Pintar as cores do branco, para esboçar a música do silêncio. Gestos mínimos, concisos, de um artista japonês: traços rápidos do pincel no espaço da tela, para iludir a idéia de tempo; para alucinar a consciência da forma. Ausência de lis, de Jorge Lucio de Campos, é um tratado lógico do delírio, uma construção rigorosa do impreciso, que nos fascina e seduz com sua nervosa beleza. O poeta ordena uma realidade recriada, ou paisagem onírica, tirando os objetos de suas funções ordinárias para redesenhá-los, realinhá-los como entes do imaginário, mas sem abdicar do acurado jogo de linguagem e da pesquisa semântica. Assim, por exemplo, no poema "O museu da noite": "Esse o resto / de uma lua / entristecida - / já sem cor - / só maçã e / andaluzia", ou ainda em "Paisagem filosófica": "Um só volume / de lábio e / montanha" (...) / "coisas que / falam de um / sol quebrado". Os poemas desta coletânea notável não formam um ciclo ou série, como a seqüência de fotogramas em uma película ou a irrupção de ideogramas no haiku; porém, há uma unidade consistente, sutil e inconsútil, nas três seções que a formam - "Desenhar", "Ad infinitum" e "As estações da razão", que somam 30 poemas (número que sugere a multiplicação do Três, a Trindade, pelo círculo mágico, o Dez, numa aritmologia poética). A impressão inicial que temos na leitura dessas miniaturas (ácidas e delicadas, como flores do inferno) é que o poeta transtornou o olhar, para ver as coisas pelo avesso da pupila. É o próprio autor que nos diz, em "Azul frontal": "Há olhos que / nem sei - / devoram toda / a realidade / De algum modo / há olhos mais / agudos do que / um gesto atroz". Em outra peça do volume, "Variação de cubos incompletos", a mesma referência à visão visionária: "Olhos que não / deixo de vestir / sempre que posso / - o inverso de / um buquê de crisântemos". O afastamento da lírica coloquial, centrada no cotidiano, em sua banalidade castrada (canonizada), não implica recusar o debate do estar-no-mundo, não foge à questão do ser no tempo; ao contrário, em Jorge Lucio de Campos, a tensão entre arte e vida, pele e página ganha contornos dramáticos, até expressionistas, como em "King Kong": "Naco de carne da noite / nesses dentes podres / que, afiado, inflo / num bafejo intenso / de silêncio e dor". Poesia como reflexão (fala) do corpo, da palavra e da mente, em sua unidade (totalidade), em sua condição de cíclico sofrimento e gozo, destino de fera entre feras, de reflexo no espelho do lago (onde brota o lótus, entre água e lama). No final do volume (virtual e onírico) encontramos (como Ulisses, na Odisséia) os espectros de filósofos pré-socráticos, como Heráclito e Parmênides, convertidos em personagens, em sujeitos semânticos de um discurso amoroso cuja Vênus (ou Sophia) é a linguagem, as palavras carregadas de informação nova, de coração e cérebro ("No breu do éter / outro éter se / dilata - em meio / ao mar um novo / mar já esquecido"). Em Ausência de lis, Jorge Lucio de Campos reafirma a qualidade de seu trabalho anterior (o poeta tem já cinco livros publicados) e desponta como um dos mais interessantes nomes da poesia brasileira contemporânea.


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