Jorge Lucio de Campos

 

 

René Magritte. A resposta imprevista, 1933.

 


 

DEPURAÇÃO

 

 

1

 

Ver a cor do

que não morre

 

na janela, o

dia ardendo

 

seus indícios

 

 

2

 

Não importa

se, num gesto

 

que não digo

tua imagem se

 

converte em

meu perigo

 

 

3

 

Estar morto

na decifra o

 

que me resta

 

Enredado na

blandícia de

 

um segundo

 

 

4

 

Nessa noite

sem brandura

 

em que te sinto

eu justo orbito -

 

míssil cego e

sem destino

 

 

5

 

Mesmo assim

eu te depuro

 

e beberico

toda a água

 

que me ofertas

pela rama

 

 

6

 

Assim é que

me apeteço

 

avanço e torno

e te penetro

 

num vaivém

de gozo limpo

 

 

7

 

Infinita bizarria

esse exercício

 

de um silêncio

quase teso

 

após o grito

 

 

 

NA CAMA EM VENEZA

 

a Howard Hodgkin

 

1

 

Pouco resta, a vida

é curta. Em pleno

dia, as coisas gemem

(inclusive as que não

sonham)

 

 

2

 

Bruscamente, a voz

de Deus se faz ouvir -

a colina não ousa

aterrissar (porém

quem ousa?)

 

 

3

 

Duas aves como

fogo pela sebe: um

fora-e-dentro que

chamei para o poema -

no aço quente de

teus olhos, não voar

(não cair)

 

 

 

TOPOGRAFIA

 

1

 

Durmo um

sonho que

 

não sinto

em cujo

 

som quase

não bebo

 

 

2

 

Perco-me

se tento -

 

um pouco

entre os

 

telhados

 

 

3

 

Acordar é

meu destino

 

meus olhos

porém, pairam

 

nesse sonho

em que

 

não brinco

 

 

 

MIGALHA

 

1

 

Penso estrelas

radiantes -

 

em tudo em

que me torno

 

e, em mim

se torna -

 

noite adentro -

 

um canto

pelas coisas

 

(pensar nelas:

o que resta)

 

 

2

 

Minha alma

salta os poros

 

perde a forma

(a meia-lua

 

de teu seio

inconcluído)

 

roga um

toque que

 

sem mãos

não posso

 

ter

 

 

3

 

Tua pele tenra

a ouço perto -

 

ela que

nem me cabe

 

mas que em

mim revira

 

uma outra

pele

 


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