Jorge Lucio de Campos




René Magritte. O império das luzes, 1954.


DESORDEM NUM CORPO CLÁSSICO

a Emilio Tadini

De cima conto-os
juntos, acocorados
sem sequer serem

o que parecem
: salpicos de tinta
- maturação de

círculos que
de resto, pulsa
num casco

de barco ou
prédio alto
- na manhã

seguinte, sem
um mar que
sirva de fundo

no topo, à
esquerda
- talvez

 

UM BOM DIA

Um bom dia não
escorre facilmente

mesmo que se deixe
ou fale dele. Seja

em búlgaro ou em
húngaro, ficará mudo

nada dirá, virará
para o outro lado

Um bom dia que
se preze independe

de atos e vontades

Em seu melhor, ou quase
nasalado e à meia-luz

já não pertence ao
mundo; é como a

sombra que os insetos
devoram ao pôr-do-sol

- criação que se
espalha e desnatura

Um bom dia
é quase sempre

um bom dia

Embora o
saibamos

depois

 

AS FÉRIAS DE HEGEL

a René Magritte

Vejo-me e anoitece
no que vejo -

se me tiram lascas e
minhas folhas caem

Se tudo digo no
metal pintado em

que me sinto - eu
mesmo, sem vento

e de novo, em
queda rubra

desde o início

 

O MOMENTO PERFEITO

a Robert Mapplethorpe

A despeito de
coisas tão cruas

o dia ameaça
começar assim -

num ranger
de dentes -

sem mais
nem menos

 

UM MINUTO APENAS

Mais alvo do que
um rosto humano

ou um despejo
de olhar furioso

Não de todo
um dia de chuva

 

O CÃO, A CHUVA

a Vasko Popa

Nada quero propor -
mesmo que não vá
a parte alguma

Na verdade não
importa: mais ou
menos em torno

deveria latir e
ninguém ligaria
se foi bom ir

além - como
se fácil fosse
avivar à toa

repetir mil vezes
: sorrir de novo
levantar pra que?

 

A CONQUISTA DO FILÓSOFO

a Giorgio de Chirico

Borco, luvas, água -
bem sei que pensa

sob a brasa do rosto
em pedaços - assim

tem sido: cordéis
de náilon a costurar

as pálpebras - nem
sempre vale a pena

: de um modo ou
de outro se retorce -

inútil tempo que
não pára

 

O PODER DO BURBURINHO

As palavras se prestam
a múltiplos fins

Cravo-as com força
na mudez do tempo

Umas, em ruínas
murmuram inaudíveis

Outras vão além e
à beira-chuva -

por brancura -
comigo morrem

Comigo morre
a tagarelice

 

OUTRO VERÃO

a Alan Feltus

De que vale sorrir -
espreitar um gesto?

Agora isso: voz que
rompe os olhos e

se encolhe de medo

Mapa ao avesso
na loucura que

não penso:
bufará às vezes -

ficará sobre
as montanhas

 

A ORIGEM DO MUNDO

a Gustave Courbet

Há uma doença
qualquer tagarela

nesse buço de
quasares negros

Ao meu lado, aqui
comigo, a carne

ferve aos poucos
- cortes lentos

Mas por que não
regurgita agora

a vulva cáqui
linguaruda

sob a luz
desenroscada

da manhã?

 

A PROPÓSITO DAS LÁGRIMAS

a Pedro Paulo Domingues

Lá estavam os olhos
de riso cinzento
em algum lugar

Sob o peso rilhado
das orelhas; num
abraço de olhos e orelhas

o mesmo rosto gasto
rasgado ao meio
- poeira no ar

 

O MISTÉRIO DE ISIDORE DUCASSE

a Man Ray

Devo-lhe a alma mais
do que a um vulto

em becos que se agitam -
às vezes tremo de prazer

na voltagem que não pára
de tornar-me o mais

infame dos enigmas; a
que devagar me rendo

pra onde quer que me
olhe - eis que me digo

e curvo sob um halo
de opalas desdentadas -

 

PAISAGEM BÁRBARA

a Nino Longobardi

 

A sombra desviou seus olhos, mas foi difícil acreditar: num ritmo sincopado, o animal farejava nos ombros. “De que sorriria? De que mal sofreria?”

Se me curvo, contemplo os anéis de sua cauda. Para tirá-lo da cabeça, afago-lhe o dorso, ofereço-lhe o colo, deixo que me excite. Apresso-me, depois, em mandá-lo às favas.

“O que quer comigo?” - provoco.

Seria bom detoná-lo logo. Importa saber o que a respeito? Sei que, o tempo todo, ficará por perto. Entre um trago e outro, uma cheirada e outra, no blá-blá-blá de sempre.

Lá fora a porrada come.

 

 

 

A TENTAÇÃO DE SANTO ANTONIO

 

a Claudio Bravo

 

Há muitas maneiras de dizer o óbvio. Às vezes, bem posta a luz do dia, o sol se cobre de manchas engraçadas e danamos a rir, um pouco alucinadamente, ainda mais velozes que o caos de nossos cabelos.

Outras vezes, contudo, nada tem a ver com nada e nossos risos - eles próprios - se interrompem. As bocas, visivelmente perturbadas pelo silêncio, começam a salivar e o mar se esvai numa língua de fogo.

 

 

 

A TRISTEZA DO CLÃ

 

Se alguém, por maldade, pingasse veneno em meu dorso, dele desviar-me-ia - graças a um providencial malabarismo - sem grandes problemas. Contudo, para meu azar, talvez um salpico me atingisse, o que bastaria para condenar-me a agonizar entre os bules e as xícaras, no breu da indefectível cozinha.

É deveras ingrata a morte adiada. Dói imaginar os pares fuçando meus restos num covil qualquer. Dói antever-me embrulhada, pernas recolhidas em decúbito dorsal. Porém o que mais dói, apagadas as luzes e o caso, de vez, encerrado, é servir de pretexto - apenas de pretexto - à tristeza do clã.

 


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