Jorge Lucio de
René Magritte. O
a Emilio Tadini
De
o
: salpicos de
- maturação de
de
num
de
- na
sirva de
no
-
UM BOM DIA
Um bom dia não
escorre facilmente
mesmo que se deixe
ou fale dele. Seja
em búlgaro ou em
húngaro, ficará mudo
nada dirá, virará
para o outro lado
Um bom dia que
se preze independe
de atos e vontades
Em seu melhor, ou quase
nasalado e à meia-luz
já não pertence ao
mundo; é como a
sombra que os insetos
devoram ao pôr-do-sol
- criação que se
espalha e desnatura
Um bom dia
é quase sempre
um bom dia
Embora o
saibamos
depois
AS FÉRIAS DE HEGEL
a René Magritte
Vejo-me e anoitece
no que vejo -
se me tiram lascas e
minhas folhas caem
Se tudo digo no
metal pintado em
que me sinto - eu
mesmo, sem vento
e de novo, em
queda rubra
desde o início
O MOMENTO PERFEITO
a Robert Mapplethorpe
A despeito de
coisas tão cruas
o dia ameaça
começar assim -
num ranger
de dentes -
sem mais
nem menos
UM MINUTO APENAS
Mais alvo do que
um rosto humano
ou um despejo
de olhar furioso
Não de todo
um dia de chuva
O CÃO, A CHUVA
a Vasko Popa
Nada quero propor -
mesmo que não vá
a parte alguma
Na verdade não
importa: mais ou
menos em torno
deveria latir e
ninguém ligaria
se foi bom ir
além - como
se fácil fosse
avivar à toa
repetir mil vezes
: sorrir de novo
levantar pra que?
A CONQUISTA DO FILÓSOFO
a Giorgio de Chirico
Borco, luvas, água -
bem sei que pensa
sob a brasa do rosto
em pedaços - assim
tem sido: cordéis
de náilon a costurar
as pálpebras - nem
sempre vale a pena
: de um modo ou
de outro se retorce -
inútil tempo que
não pára
O PODER DO BURBURINHO
As palavras se prestam
a múltiplos fins
Cravo-as com força
na mudez do tempo
Umas, em ruínas
murmuram inaudíveis
Outras vão além e
à beira-chuva -
por brancura -
comigo morrem
Comigo morre
a tagarelice
OUTRO VERÃO
a Alan Feltus
De que vale sorrir -
espreitar um gesto?
Agora isso: voz que
rompe os olhos e
se encolhe de medo
Mapa ao avesso
na loucura que
não penso:
bufará às vezes -
ficará sobre
as montanhas
A ORIGEM DO MUNDO
a Gustave Courbet
Há uma doença
qualquer tagarela
nesse buço de
quasares negros
Ao meu lado, aqui
comigo, a carne
ferve aos poucos
- cortes lentos
Mas por que não
regurgita agora
a vulva cáqui
linguaruda
sob a luz
desenroscada
da manhã?
A PROPÓSITO DAS LÁGRIMAS
a Pedro Paulo
Domingues
Lá estavam os olhos
de riso cinzento
em algum lugar
Sob o peso rilhado
das orelhas; num
abraço de olhos e orelhas
o mesmo rosto gasto
rasgado ao meio
- poeira no ar
O MISTÉRIO DE ISIDORE DUCASSE
a Man Ray
Devo-lhe a alma mais
do que a um vulto
em becos que se agitam -
às vezes tremo de prazer
na voltagem que não pára
de tornar-me o mais
infame dos enigmas; a
que devagar me rendo
pra onde quer que me
olhe - eis que me digo
e curvo sob um halo
de opalas desdentadas -
PAISAGEM BÁRBARA
a Nino Longobardi
A sombra desviou seus
olhos, mas foi difícil acreditar: num ritmo sincopado, o animal farejava nos
ombros. “De que sorriria? De que mal sofreria?”
Se me curvo, contemplo
os anéis de sua cauda. Para tirá-lo da cabeça, afago-lhe o dorso, ofereço-lhe o
colo, deixo que me excite. Apresso-me, depois, em mandá-lo às favas.
“O que quer comigo?” -
provoco.
Seria bom detoná-lo
logo. Importa saber o que a respeito? Sei que, o tempo todo, ficará por perto.
Entre um trago e outro, uma cheirada e outra, no blá-blá-blá de sempre.
Lá fora a porrada
come.
A
TENTAÇÃO DE SANTO ANTONIO
a Claudio Bravo
Há muitas maneiras de
dizer o óbvio. Às vezes, bem posta a luz do dia, o sol se cobre de manchas
engraçadas e danamos a rir, um pouco alucinadamente, ainda mais velozes que o
caos de nossos cabelos.
Outras vezes, contudo,
nada tem a ver com nada e nossos risos - eles próprios - se interrompem. As
bocas, visivelmente perturbadas pelo silêncio, começam a salivar e o mar se
esvai numa língua de fogo.
A
TRISTEZA DO CLÃ
Se alguém, por
maldade, pingasse veneno em meu dorso, dele desviar-me-ia - graças a um
providencial malabarismo - sem grandes problemas. Contudo, para meu azar,
talvez um salpico me atingisse, o que bastaria para condenar-me a agonizar
entre os bules e as xícaras, no breu da indefectível cozinha.
É deveras ingrata a
morte adiada. Dói imaginar os pares fuçando meus restos num covil qualquer. Dói
antever-me embrulhada, pernas recolhidas em decúbito dorsal. Porém o que mais
dói, apagadas as luzes e o caso, de vez, encerrado, é servir de pretexto -
apenas de pretexto - à tristeza do clã.