Jorge Lucio de Campos
Francis Bacon. Estudos a partir do corpo humano, 1986.
Em Eletrodos, a poesia ‘repleta’ (não ‘completa’, como nos inteira o subtítulo dessa reunião de toda a sua produção até 2002) de Rodrigo de Souza Leão se dá, ou como uma grande sinuosidade - em que, amiúde, até perdemos, diante da inconstância que lhe é intrínseca, a possibilidade do belveder (do ‘belo ver’) - ou como um movimento em arco exploratório que não deixa de ser, em seus momentos felizes, uma espécie de périplo náufrago, ou antes, um nomadismo solto, ou ainda, uma anábase no melhor sentido grego, a saber, de uma expedição ao interior das coisas (mesmo das que resistem às aberturas, das que nos envenenam de seu dentro). Sua escritura vertiginosa e variante dá-nos a impressão de estarmos, ao mesmo tempo, diante de uma escalada e de uma descida, de uma entrada e de uma saída, de uma espiral e de uma reta, de um ataque mortal e de um retraimento estratégico, de uma jornada, enfim, de dupla via, aos sentidos fechados contidos, a céu aberto, neste mundo que nos fabrica.
Mas por que engajar-se em tal jornada acaba sendo embaraçoso? É que nem sempre é fácil acompanhar o que se dá como mistura e então oscila, o que nunca se define e assim descontrola. Duas plataformas ali se revezam: uma trazendo à pele o que já pensávamos ser medula; a outra afundando o que já nos habituara com a superfície. Em ambas, distribuído, desigualmente, um enxame de ganhos e de perdas, de cintilações e de opacidades. Quando à tona, Rodrigo, por via de regra, dialoga com dicções alheias, experimenta (nem sempre acerta) com estilos constituídos, porém também registra espalhamentos sutis, filigranados,
propondo, como disse o poeta Claudio Daniel, em seu prefácio a No litoral do tempo - um dos mais bem estruturados trabalhos de Rodrigo - “um conjunto multifacetado, que surpreende o leitor com flashes líricos”. Ótima expressão para designar suas insistentes tentativas de interrupção do escuro, plenas de gagueira e cantos de pássaro, visando conduzir-nos a um delírio de referências (como no poema ‘Canto ao abismo interno’) entre si “soldadas como blocos indecomponíveis” (aproprio-me aqui de um trecho de Deleuze).
Quando imerso, entretanto, no magma de seu imaginário, Rodrigo cresce em desenvoltura e, abraçando, com uma surpreendente criatividade, uma saudável indeterminação estilística, mostra vocação para o profundo e para o imaginal, para um extrato subterrâneo de sua própria poiesis, onde o linear perde força para a difuso. Permito-me destacar aqui, como um justo arremate desta rápida apresentação, alguns traços da sensação de afundamento que, permeando Eletrodos, termina por apontar um caminho de plenitude poética - extraídos de um único e fragmentário poema (‘Dilúvio’) - todos, a meu ver, expressivos dessa ‘visceralidade’
disseminada que considero sua legítima marca-d’água: “Tenho que olhar sempre o nada / Foi me dito que tudo é sempre (...) / Eu esperei a chuva. Eu fiz / A dança da chuva dentro de mim. / E me libertei num dia negro (...) / Ah, se eu não pude viver / De que vale o mundo. Bonito / Ou imundo. Mundo inundando // Queimando. Queimando
/ Olho as bolas de fogo / Colorindo o infinito dos olhos (...) / A garça interpreta em silêncio / Sua vocação para o branco”. E por fim, destacar na íntegra, o que o poeta deixa transparecer em ‘Imobilidade diante dos fogos’: “parado, o silêncio me confunde / imóvel, teu laço de amizade / toda a mobilidade parada ainda // só pra te ouvir soltar cachorros / e engolir toda a pólvora de luz / cuspir o nosso amor em fogos”.
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