Jorge Lucio de Campos
Mark
Tansey. O teste do olho inocente, 1981.
1.
Poderia nos dizer como é seu processo criativo, o que acontece consigo quando
escreve poesia? Em especial, o peso relativo ou o papel desempenhado por coisas
como razão e emoção, cálculo e inspiração, composição a frio ou em estados de
êxtase ou possessão, raciocínio e paixão, etc?
O meu processo criativo - e isso parece ser recorrente na maioria dos poetas - é decerto instável no sentido de ser extremamente dependente de fases e alterações de contexto. Para minha 'sorte', quando me encontro num período, digamos, fértil de idéias e sensações, consigo produzir muito (e, ao menos para mim, convincentemente, em termos qualitativos), chegando, às vezes, a escrever um número surpreendente de poemas num curtíssimo espaço de tempo. Para minha 'sorte' também, tais períodos não tem sido tão espaçados assim (digo isso me baseando no depoimento de alguns amigos que garantem ficar criativamente estagnados durante meses). Dificilmente deixo de criar durante um longo tempo. Por outro lado, ao menos num primeiro momento, sou também extremamente dependente do acaso. Alimento-me de insights, de encontros, de acendimentos sensório-mentais que dependem, e muito, das situações de meu cotidiano, das releituras que faço das coisas, das vivências que tenho com outras pessoas e textos. Já o meu segundo momento (e em todos os subseqüentes), faço questão de torná-lo extremamente regrado. A razão, o cálculo e o raciocínio reinam absolutos em comparação com a emoção, a inspiração e a paixão. Creio que uma vez obtida a energia original, o trabalho deve ser de lapidação, busca de concisão, depuração e empenho formal. Poesia para mim é isso: basicamente intuição e expressão. Não funciono bem em estados de êxtase, com certeza, raros ao longo de meus quarenta e um anos de vida. Mas reconheço serem eles fascinantes (embora também me amedrontem bastante), por dizerem respeito ao outro lado, àquilo que você sente como sua parte maldita, ou seja, àquilo que representa a sua mais íntima afirmação individual e, ao mesmo tempo, o afrouxamento (e mesmo a desqualificação definitiva) de tudo que se optou por valorizar em termos simbólicos.
2.
É capaz de nos dizer como reconhece o valor de um poema? Ou, usando termos mais simples, se é capaz de traduzir, decodificar, nos explicar o que, ao ler um poema que ainda não conhecia, o leva a achar esse poema bom ou ruim (ou mediano, ou parcialmente bom ou ruim, ou qualquer outra coisa)?
Como
sugeri, anteriormente, o processo criativo (não só em termos poéticos) não
pode, sob pena de se autodesqualificar, deixar de marcar uma invariável
positividade. Um artista criativo é aquele que consegue conceder (direta ou
indiretamente) à sua obra a capacidade de afirmação e instauração do sentido.
Como disse, por detrás da complexidade da fatura da boa poesia (assim como da
boa pintura, etc. etc.), estão dois agenciamentos mínimos fundamentais: a
intuição (o bom poeta é sempre aquele bem-sucedido na extração-captura
ordenadora do sentido bruto-caótico das coisas) e a expressão (o bom poeta é
sempre aquele que sabe expressar, adequadamente - de forma a torná-lo
esteticamente compartilhável - o resultado 'concreto' daquela
extração-captura). Dentro de tal contexto, a valoração de um poema se mostra,
então, muito relativa. Depende enormemente dos elementos mínimos
disponibilizados, no ato do encontro, pelo poeta e pelo leitor-avaliador de sua
poesia. Isso sem contar com os aspectos psicológicos que, inevitavelmente,
interferem no processo, acelerando-o ou estancando-o. A grande arte nunca foi e
ainda não é da ordem das multidões, pois sua universalidade não pode ser
'fabricada', apesar do esforço, cada vez mais agressivo, dos meios de
comunicação e dos agentes do mercado. A grande poesia é da ordem solitária dos
indivíduos-neles-mesmos e de suas clandestinas partilhas interpessoais.
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