Jorge Lucio de Campos
Mark Tansey. Monte Sainte-Victoire,
1987.
1. Como foi o seu encontro com a literatura? Quais livros formaram o poeta que é hoje?
Desde menino senti uma forte atração pela poesia (mais até do que pela filosofia e pela pintura que vieram depois a também fazer parte de mim). Uma das primeiras figuras que idealizei (e que agora cultivo) foi a do poeta. Li muito, mas passionalmente, os românticos, Bandeira, Drummond, Cabral, Mallarmé, Tzara, Cummings... Passei a vê-los com outros olhos, a partir do início desta década, quando incentivado por amigos, resolvi entregar-me formalmente ao fazer poético. Se tivesse que apontar influências falaria necessariamente de dadaístas e surrealistas e de Williams, Zukofsky, Ponge e, bem recentemente, Robert Creeley e Michael Palmer. Se tivesse que falar de livros, apontaria Pictures from Brueghel, de Williams, L’homme approximatif, de Tzara e, claro, Un coup de dés, de Mallarmé.
2. Como é o seu processo de criação?
Busco recorrentemente na pintura a maior parte de minha inspiração. Compreendo que a citação é um traço poético inevitável nos tempos atuais. Em função disso, o que proponho pode ser corretamente chamada de metapoético. A idéia tem sido captar, com a palavra, a poesia da imagem ou antes transcriá-la textualmente. Mas veja bem: transcriar não significa aqui, de modo algum, ilustrar ou transcrever. O objetivo é gestar uma poesia que, dentro de minhas limitações pessoais, consiga ser criativa (mesmo que, para tanto, sob muitos pontos de vista, se arrisque a ser tachada de hermética).
3. Alexei Bueno diz que a poesia atual é "coco de cabrito: pequena, sequinha e idêntica". Você consegue fazer uma ordenação, encontrar vertentes, nesta poesia do final de século? Fale sobre.
Não há vertentes, mas apenas confluências e releituras. Tentativas, como a minha própria, de criar em novos termos. Isso não é nem um pouco fácil. O repertório, cada vez mais presente e referencial, decerto inibe a maioria dessas tentativas. Concordo com Bueno no que diz respeito à má poesia, aos lugares comuns e mediocridades que sempre existiram e continuarão existindo. Mas, por outro lado, também ocorrem boas dicções que, como de hábito, são bem rarefeitas. O problema maior me parece o isolamento que lhes é imposto pelo mercado editorial, uma vez que não fazem o jogo do fluxo fácil, daquilo que Nietzsche chamou, matreiramente, de Eterno Retorno do Mesmo.
4. O que o poema deve ter para que exista o fenômeno poético? Ou vale tudo?
Sobretudo, ele tem que ser criativo. Não importa tanto a aparência conferida à sua criatividade (ou a sua capacidade de comunicação) quanto o seu talento em ordenar a parte do caos que lhe cabe. Quando falo de aparência me refiro à forma que me parece sempre válida (não importando exatamente qual seja) desde que adequada à matéria poética por ela agenciada. Não creio, portanto, que valha tudo. Em termos poéticos, vale antes o que acerta em sua proposta de criar, no interior do processo, novos esgarçamentos e aberturas.
5. Quantos livros têm? Qual poema personifica melhor a sua obra?
Cinco ao todo. Estreei em 1991, com Arcangelo (Prêmio UERJ 40 Anos) e depois lancei Speculum (1993), Belveder (1994), A dor da linguagem (1996) e À maneira negra (1997). Os dois primeiros foram editados pela EdUERJ, o terceiro pela Diadorim e os dois últimos pela Sette Letras. Acabei de concluir Lição de alvura (inédito) e trabalho uma nova coletânea ainda sem título. Se minha escritura chega a ser pletórica, dada à pulsão, sou obsessivo com a forma, tenho uma paciência revisional por vezes enervante. Há, é claro, alguns poemas que personificam melhor as minhas intencionalidades. Um deles talvez seja ‘O poder do burburinho’ (em A dor da linguagem), principalmente em sua afirmação de que: “As palavras se prestam/a múltiplos fins// Cravo-as com força/na mudez do tempo//Umas, em ruínas/murmuram inaudíveis//Outras vão além e/à beira-chuva -/por brancura -/comigo morrem//Comigo morre/a tagarelice”. Tenho me apoiado, invariavelmente, na convicção de que a linguagem (seja de que natureza for, desde que poética) representa a única instância pura de fatura e criação. Creio que, nesse fim de século, o maior esclarecimento que pudemos obter foi com relação à intimidade (não apenas concreta) da linguagem. Desmistificada, após séculos de usos digressivos, ela nos concede importantes compensações. Livre, hoje, graças aos impressionantes avanços tecnológicos, de uma série de injunções de natureza material, efetivamente, o homem está pronto para ser criativo e, neste contexto, a palavra poética deverá exercer um papel decisivo.
6. O que pensa sobre antologias poéticas, concursos literários, prêmios? Um poeta é um atleta?
A iniciativa das antologias é importante, pois assim se catalisam valores que, de outro modo, não ganhariam visibilidade. Pode-se dizer o mesmo dos concursos e prêmios literários. Certamente é ainda pouco. Muito mais poderia ser feito para a valorização da poesia. Por outro lado, a tendenciosidade amiúde presente nesse jogo prejudica iniciativas em si positivas. Isso parece ser, contudo, inevitável. O problema é que, quando em excesso, ela gera mal-estar e mesmo um ceticismo que facilmente se generaliza entre as gerações mais jovens. Há apadrinhamentos, a pressão de interesses explicitamente comerciais, incompetência e incoerência na marcação e aplicação de critérios... Quanto à segunda questão, não me parece que a figura do atleta seja a que melhor define o poeta. Ou melhor, define parcialmente, visto que a palavra deriva do verbo grego ‘athlein’ (lutar, competir) e então, sob vários aspectos, os sentidos se ajustam. A função do poeta tem sido vista, pejorativamente (ao menos desde Platão), como a da tensão gratuita. Em minha opinião, no entanto, o poeta é, antes de tudo, uma espécie de demiurgo, um (re)organizador de matérias movido, invariavelmente, por parâmetros de idealizações.
7. Até quando a crítica literária vai se resumir em Wilson Martins?
Até onde deixarem ou quiserem. A crítica literária, a exemplo do circuito das antologias e concursos, pode desempenhar um papel relevante no que tange à educação de gostos. Peca, quase sempre, por também ser tendenciosa e inconsistente. Acompanho-a exclusivamente em função de sua latente positividade. A crítica de Wilson Martins é interessante por ser a crítica de Wilson Martins. Assim como todas as demais, ela se limita a si própria. Devemos levá-la em conta apenas por isso. O resto é atração e repulsa.
8.
Vejo-a
9. Tem
alguma
É
10.
Tão relevante quanto qualquer outro. O exercício poético é milenar e tem sobrevivido a todo tipo de percalços. Parece mesmo que o homem, apesar de todo um enorme esforço em contrário, não consegue viver sem determinadas estratégias de compensação simbólica. Por mais científicamente assumida que seja a sua mentalidade, por maior que seja a sua dependência da positividade, a sociedade moderna ainda não conseguiu ser rígida o suficiente para esquecer a poesia.