Jorge Lucio de Campos



Eric Fischl. A jornada do romance (cena IV), 1994.


O NOVO ESPÍRITO E OS POETAS (1917) 

O novo espírito que dominará o mundo inteiro não se dá em nenhum outro lugar como na poesia da França. A forte disciplina intelectual que os franceses sempre se impuseram lhes permite - a eles e a seus parceiros espirituais - fomentar uma concepção da vida, das Artes e das Letras que, longe de ser apenas uma simples ratificação dos valores da Antigüidade, tampouco se reduz a uma extensão do belo cenário romântico.

O novo espírito que se anuncia pretende ter herdado dos clássicos sobretudo um sólido bom senso, uma firme atitude crítica, uma visão de conjunto do universo e da alma humana, além de um senso de dever que evita o sentimentalismo, limitando (ou antes contendo) qualquer manifestação nesse sentido.

Dos românticos pretende ter herdado uma curiosidade que o impele a explorar todos os domínios proporcionadores de uma matéria literária que, por sua vez, permita exaltar a vida.

Explorar a verdade, procurá-la, tanto no domínio étnico quanto, por exemplo, no da imaginação, eis as principais metas desse novo espírito.

Tal tendência sempre teve, de resto, alguns audaciosos representantes que, contudo, a ignoravam; mas há muito tempo ela vem se formando e está a caminho.

Entretanto esta é a primeira vez que ela se mostra consciente de si mesma já que, até agora, o domínio da literatura se encontrava circunscrito a limites muito estreitos. Ou se escrevia em prosa ou se o fazia em verso. No que tange à prosa, rígidas regras gramaticais controlavam sua forma.

Quanto à Poesia, a versificação rimada era uma espécie de lei que, mesmo sofrendo ataques periódicos, permanecia inabalável.

Embora tenha propiciado um grande impulso ao lirismo, o verso livre mostrou ser apenas uma das etapas das explorações possíveis de serem implementadas no domínio da forma.

As pesquisas formais adquirem agora uma enorme importância. Nada mais legítimo.

Como tais pesquisas poderiam não interessar ao poeta, elas que podem determinar novos rumos para o pensamento e o lirismo?

A assonância, a aliteração, assim como a rima, são convenções que possuem seus próprios méritos.

Os artifícios tipográficos, levados adiante com uma grande dose de audácia, tiveram a vantagem de fazer eclodir um lirismo visual praticamente inédito em nossa época. Poderão ir mais longe ainda e consumar a própria síntese das artes, da música, da pintura e da literatura.

O que temos aí, basicamente, é uma pesquisa que visa atingir novas expressões perfeitamente legítimas.

Quem ousaria dizer que os exercícios de retórica, as variações sobre o tema de Eu morro de sede junto à fonte não exerceram uma influência determinante sobre o gênio de Villon? (1) Quem ousaria dizer que as pesquisas formais dos retóricos e da escola de Marot (2) não serviram para apurar o gosto francês até o seu pleno florescimento no século XVII?

Parece estranho que, numa época onde o cinema - a arte popular por excelência - se comporta como um livro de imagens, os poetas não tenham tentado ainda proporcionar imagens para aqueles espíritos que, mais meditativos e refinados, encontrar-se-iam potencialmente descontentes com o tosco imaginário dos produtores de filmes. Estes apurar-se-ão e é possível prever que um dia - tendo já o fonógrafo e o cinema se transformado nas únicos meios de impressão em uso - os poetas conquistem uma liberdade até então desconhecida.

Não chega a surpreender que eles, dispondo apenas dos meios de agora, busquem se preparar melhor para essa nova arte (bem mais ampla que a simples arte das palavras) graças a qual, como que regentes de uma orquestra de inauditas proporções, terão à sua disposição o mundo inteiro, seus rumores e aparências, o pensamento e a linguagem humana, o canto, a dança, todas as artes e artifícios, enfim, mais miragens até que as que Morgana (3) fez surgir no Monte Gibel ao compor o livro do futuro.

Porém não encontraremos na França, de um modo geral, essas "palavras em liberdade" - no nível em que as levaram adiante as promessas futuristas, italiana e russa - essas filhas excessivas do novo espírito, pois trata-se de um país avesso à desordem. No qual, embora seja possível um retorno de bom grado aos princípios, o horror ao caos é, sem dúvida, considerável.

Seria mais do que viável, portanto, no que tange à matéria e aos meios da arte, supor uma liberdade de riqueza inimaginável. Os poetas fazem hoje a aprendizagem dessa liberdade enciclopédica. No domínio da inspiração, a sua não poderia mesmo ser menor que a desses jornais que, diariamente, tratam, numa única folha, de múltiplas matérias, percorrendo assim os países mais distantes. Seria o caso de perguntar também porque o poeta não poderia ambicionar uma liberdade e ação iguais, numa época, como a nossa, já tão bem servida pelo telefone, pela telegrafia sem fio e pela aviação...

A rapidez e a velocidade com que os espíritos se habituaram a designar com uma única palavra seres tão complexos quanto as multidões, as nações, o universo, ainda não tiveram sua contrapartida moderna na poesia. Os poetas estão preenchendo tal lacuna e, com seus poemas sintéticos, criando novas entidades de valor plástico tão compósito quanto o dos termos coletivos.

O homem se familiarizou com esses seres formidáveis que são as máquinas, explorou o domínio do infinitamente pequeno, sendo que novos domínios ora se abrem à atividade de sua imaginação: o do infinitamente grande e o da profecia.

Não acreditemos, contudo, que esse novo espírito seja complicado, frouxo, artificial ou mesmo insensível. Seguindo a própria ordem da natureza, o poeta desvencilhou-se de toda pompa. Não resta mais nenhum wagnerismo entre nós e os jovens autores rejeitam todo o espólio encantado do colossal romantismo da Alemanha de Wagner, assim como os rústicos ouropéis do que nos havia valido Jean-Jacques Rousseau.

Não acredito que os acontecimentos sociais vão tão longe a ponto de, um dia, não se poder mais falar de literatura nacional. Ao contrário, por mais longe que se explore a via das liberdades, esta apenas irá reforçar a maioria das antigas disciplinas, delas surgindo outras que, embora novas, não serão menos exigentes que as antigas. Por isso penso que, não importa onde chegue, a arte remeterá, cada vez mais, a uma pátria. Aliás os poetas sempre foram a expressão de um meio, de uma nação, e os artistas, assim como os poetas e os filósofos, sempre formaram um patrimônio social que, sem dúvida, pertence à humanidade, enquanto expressão de uma raça, de um dado meio.

A arte só deixará de ser nacional no dia em que o universo inteiro, partilhando um mesmo clima, habitando moradias construídas segundo um mesmo modelo, falará a mesma língua com o mesmo sotaque, ou seja, nunca. Das diferenças étnicas e nacionais nasce a variedade das expressões literárias e é justamente esta variedade que urge salvaguardar.

Uma expressão lírica cosmopolita geraria apenas obras inexpressivas e de pouca consistência, que valeriam tanto quanto os lugares comuns da retórica parlamentar internacional. E notemos que o cinema - uma arte cosmopolita por excelência - expressa diferenças étnicas perceptíveis em todo o mundo, já discernindo, claramente, o seu público entre um filme norte-americano e outro italiano. Assim também, o novo espírito - cuja ambição de encarnar o espírito universal não lhe permite limitar sua atividade a isto ou àquilo - que pretende respeitá-lo, enquanto uma expressão particular e lírica da nação francesa, tanto quanto o espírito clássico, igualmente uma expressão sublime desta última.

Urge não esquecer o quanto pode ser danoso para uma nação que a conquistem, não pelas armas, mas intelectualmente. Isso porque o novo espírito recorre sobretudo à ordem e ao dever - as grandes qualidades clássicas pelas quais se manifesta, do modo mais nobre, o espírito francês - associando-as à liberdade. Liberdade e ordem essas que, aliás, se confundem no novo espírito, como sua característica e força.

Entretanto essa síntese das artes, consumada em nosso tempo, não deve se degenerar numa confusão. Isso significa dizer que seria - senão perigoso, no mínimo absurdo - reduzir, por exemplo, a poesia a uma espécie de harmonia imitativa que não teria para si como desculpa nem mesmo o fato de ser exata.

Creio ser razoável imaginar que a harmonia imitativa poderia até vir a exercer alguma função. Contudo serviria de base apenas a uma arte em que as máquinas interviessem; por exemplo, um poema ou uma sinfonia compostas no fonógrafo poderiam muito bem consistir em ruídos artisticamente escolhidos ou liricamente misturados ou justapostos, ao passo que, de minha parte, vejo com maus olhos que um poema simplesmente se resuma à imitação de um ruído ao qual não se possa atribuir nenhum sentido lírico, trágico ou patético. E se alguns poetas se entregam a esse jogo, creio que urge ver aí não mais do que um exercício ou um esboço das notas que eles, em seguida, encarregar-se-ão de inserir numa determinada obra. O "brékéké koax" das Rãs de Aristófanes (4) nada é se destacado da obra no interior da qual deverá sedimentar todo um sentido cômico ou satírico. Os i i i i prolongados, durante toda uma linha, do pássaro de Francis Jammes (5) são de uma má harmonia imitativa se destacados do poema no interior do qual poderão precisar toda sua fantasia.

Quando um poeta moderno registra, seguidas vezes, o zunido de um avião, devemos identificar aí sobretudo o seu desejo em adaptar seu espírito à realidade. Sua paixão pela verdade o impele a tomar, quase que cientificamente, notas que, se desejar apresentar como poemas, terão a desvantagem de ser apenas, por assim dizer, metos simulacros em relação aos quais a realidade ficará sempre num plano superior.

Se ele, ao contrário, desejando expandir, por exemplo, a arte da dança, propusesse uma coreografia na qual os bailarinos, não se limitando aos entrechats, soltassem gritos que ressaltariam a harmonia de uma imitativa novidade, teríamos aí uma experiência de modo algum absurda, cujas fontes populares remetem a todos aqueles povos cujas danças guerreiras são, em geral, incrementadas com gritos selvagens.

No que tange ao compromisso com a vontade de verdade e com a verossimilhança, característico de todas as investigações, tentativas e experiências do novo espírito, é preciso acrescentar que não chega a surpreender o fato de que muitas delas tenham permanecido momentaneamente estéreis e mesmo caído no ridículo. O novo espírito é, de fato, cheio de perigos e ciladas.

Tudo isso resulta, contudo, do espírito de hoje e condenar, em bloco, tais tentativas e experiências seria cometer um erro semelhante ao que, por bem ou por mal, se atribui a M. Thiers, (6) que teria declarado serem as ferrovias apenas um 'jogo científico' e que o mundo não poderia produzir ferro suficiente para construir carris de Paris a Marselha.

O novo espírito portanto admite mesmo as experiências literárias mais casuais, sendo estas, por vezes, até pouco líricas. Isso porque o lirismo é tão-somente um dos domínios do novo espírito na poesia atual que amiúde se contenta com as pesquisas, as investigações, sem se preocupar em fornecer-lhes uma significação lírica. São materiais que o poeta acumula, que o novo espírito acumula e que formarão um fundo de verdade cuja simplicidade e modéstia não devem ser de modo algum repelidas, pois as conseqüências, os resultados podem ser grandes, muito grandes.

Mais tarde, aqueles que estudarem a história literária de nosso tempo se surpreenderão com o fato de que, à semelhança dos alquimistas, sonhadores e poetas tenham podido - sem o pretexto de uma pedra filosofal - dedicar-se a pesquisas e notações que os tornariam o alvo das zombarias de seus contem-porâneos, jornalistas e esnobes.

Entretanto suas pesquisas serão úteis, pois constituem as bases de um novo realismo talvez não inferior ao, tão poético e sábio, da Grécia Antiga.

Pudemos ver também como, desde Alfred Jarry, (7) o riso se elevou das baixas regiões em que se contorcia para proporcionar ao poeta um lirismo inteiramente novo. Onde está o tempo em que o lenço de Desdêmona parecia ridiculamente inadmissível? Hoje o próprio ridículo é cobiçado; muitos tentam, de todos os modos, dele se apropriar, e ele ocupa um lugar só seu na poesia, já que faz parte da vida tanto quanto o heroísmo e tudo mais que outrora alimentava o entusiasmo dos poetas.

Os românticos tentaram conferir às coisas de aparência grosseira um significado horrível ou trágico. Em outras palavras, se empenharam particularmente num culto ao horrível. Quiseram acomodar o horror mais ainda que a melancolia. Já o novo espírito não busca a transformação do ridículo. Antes atribui-lhe um papel nada insípido. Por outro lado, não quer dar ao horrível um sentido nobre. Aceita-o enquanto tal, mas, de modo algum, avilta o nobre. Se não é uma arte decorativa, também não chega a ser impressionista. É sobre-tudo um estudo da natureza exterior e interior, um ardor pela verdade.

Mesmo que seja verdade que nada há de novo sob o sol, isso não autoriza que não busquemos aprofundar tudo o que não é novo sob o sol. O bom senso é o seu guia e esse guia o conduz a paragens senão novas, ao menos desconhecidas.

Mas não haveria nada de novo sob o sol? Será preciso conferir.

Mas que, radiografaram minha cabeça e, vivo, vi por dentro o meu próprio crânio! Isso não seria uma novidade? Contem para outro!

Salomão falava, sem dúvida, pela rainha de Sabá e admirava tanto a novidade que tinha inúmeras amantes.

Os ares se enchem de pássaros estranhamente humanos. As máquinas, filhas sem mãe do homem, vivem uma vida sem paixões e sentimentos, e isso não seria absolutamente novo?

A todo momento, os sábios escrutam novos universos descobertos a cada encruzilhada da matéria e nada haveria de novo sob o sol. Para o sol, quem sabe. Mas nunca para os homens!

As milhares e milhares de combinações naturais que nunca foram feitas, eles as imaginam e implementam, compondo assim com a natureza essa suprema arte chamada vida. São essas novas combinações, essas novas obras da arte da vida, que chamamos de progresso. Neste sentido, ele existe. Porém se o fazemos consistir num eterno tornar-se, numa espécie de messianismo tão apavorante quanto as fábulas de Tântalo, Sísifo e Danaide, então Salomão tinha razão contra os profetas de Israel.

O novo existe sim, sem estar em progresso. A surpresa é sua senha, assim como do novo espírito. É o que há nele de mais vivo e original. A surpresa é o grande novo impulso. É mediante a surpresa que o novo espírito se distingue de todos os movimentos artísticos e literários que o precederam.

Nesse ponto, ele se destaca de todos e pertence ao nosso tempo.

Estabelecemo-lo sobre as sólidas bases do bom senso e da experiência, que nos levaram a aceitar as coisas e os sentimentos sempre segundo a verdade, e é segundo a verdade que o admitiremos, não procurando, de modo algum, sublimar o que é naturalmente ridículo ou vice-versa. E dessas verdades resulta quase sempre a surpresa visto que vão contra a opinião comumente admitida. Muitas dessas verdades não tinham sido ainda examinadas. Bastará examiná-las mais a fundo para se ter uma surpresa.

É igualmente possível expressar uma verdade hipotética que cause surpresa, uma vez não se tenha ainda ousado apresentá-la. Uma verdade hipotética, contudo, não tem contra si o bom senso, sem o qual já não seria uma verdade, mesmo que hipotética. É assim que, ao supor que, uma vez deixando as mulheres de parirem, os homens poderiam fazê-lo em seu lugar, e demonstrá-lo, exprimo uma verdade literária que só poderá ser qualificada como fábula fora da literatura, determinando, assim, a surpresa. Porém minha verdade hipotética não é mais extraordinária ou inverossímil do que a dos gregos, que mostravam Minerva saindo armada da cabeça de Júpiter.

Enquanto os aviões não povoaram o céu, a fábula de Ícaro foi apenas uma verdade hipotética. Hoje já não é mais uma fábula. E nossos inventores nos acostumaram a prodígios maiores ainda que delegar aos homens a função de parir. Direi mais: é justamente por estarem as fábulas, em sua maioria, já realizadas que cabe ao poeta imaginar novidades que os inventores, por seu turno, poderão realizar.

O novo espírito exige que nos imbuamos dessas tarefas proféticas. Isso porque encontraremos um caráter profético na maioria das obras concebidas segundo o novo espírito. Os jogos divinos da vida e da imaginação dão livre curso a uma atividade poética inteiramente nova.

Poesia e criação são uma só e mesma coisa; devemos chamar de poeta tão-somente aquele que inventa, aquele que cria, na medida em que o homem pode criar. O poeta é aquele que descobre novas alegrias mesmo que sejam penosas de suportar. É possível ser poeta em todos os domínios: basta que se-jamos aventureiros e abertos à descoberta.

Sendo a imaginação, de todos os domínios, o mais rico e menos conhe-cido, aquele cuja extensão é infinita, em nada surpreende que se tenha reservado, mais partnome de poeta àqueles que procuram as novas alegrias que balizam os enormes espaços imaginativos.

O menor fato é, para o poeta, um postulado, o ponto de partida de uma imensidão desconhecida em que ardem as fogueiras das significações múltiplas.

Para partir rumo à descoberta, ele não necessita se reforçar com regras, mesmo que essas sejam decretadas pelo gosto ou por um fato classificado to classificado como sublime. É possível partir-se de um dado cotidiano: um lenço que cai pode ser para o poeta a alavanca com a qual ele erguerá todo um universo. Todos sabem o que a queda de uma maçã representou para Newton, esse sábio que podemos chamar de poeta. Isso porque o poeta de hoje não despreza nenhum movimento da natureza e seu espírito persegue a descoberta tanto nas sínteses mais vastas e incompreensíveis: multidões, nebulosas e oceanos, quanto nos fatos aparentemente mais simples: uma mão que vasculha um bolso, um palito de fósforo que se acende após ser friccionado, os sons de animais, o aroma dos jardins após a chuva, uma chama que nasce numa lareira. Os poetas não são ape-nas os homens do belo. São também, e principalmente, os homens do verdadeiro, uma vez que permitem que penetremos no desconhecido, embora a surpresa, o inesperado, seja uma das principais forças motrizes da poesia de hoje. E quem ousaria dizer que, para aqueles que são dignos da alegria, o novo não seja belo? Os outros encarregar-se-ão de envilecer, rapidamente, essa sublime novidade que logo depois poderá entrar no domínio da razão, mas somente nos limites em que o poeta, único disseminador do belo e do verdadeiro, terá feito a sua proposição.

O poeta, pela própria natureza de tais explorações, se encontra isolado nesse novo mundo que ele é o primeiro a freqüentar. O único consolo que lhe resta é que, estando os homens vivendo, enfim, só de verdades - apesar das mentiras que as estofam - ocorre ser ele o único a alimentar a vida na qual a humanidade as encontra. Isso porque, sendo os poetas modernos, antes de tudo, os poetas de uma verdade sempre renovada, sua tarefa se torna infinita; eles nos surpreenderam e surpreenderão ainda muito mais. Imaginam já desígnios mais profundos que aqueles que, maquiavelicamente, fizeram nascer o signo inútil e apavorante do dinheiro.

Aqueles que imaginaram a fábula de Ícaro - hoje tão maravilhosamente realizada - encontrarão outras ainda que nos farão entrar bem vivos e despertos no noturno e fechado mundo dos sonhos. Nos universos que palpitam inefavelmente acima de nossas cabeças. Nesses universos, mais próximos e mais afastados, que gravitam no mesmo ponto do infinito que o que trazemos em nós mesmos. E maravilhas, em maior número ainda que as que surgiram desde o nascimento dos mais velhos entre nós, farão parecer pálidas e pueris as invenções contemporâneas de que tanto nos orgulhamos.

Os poetas serão enfim encarregados de fornecer, através das teleologias líricas e alquimias arquilíricas, um sentido sempre mais puro à idéia divina, em nós tão viva e verdadeira, essa perpétua renovação de nós mesmos, criação eterna, poesia sempre renascente da qual vivemos.

Segundo se sabe, a maioria dos poetas de hoje são franceses.

Todas as demais línguas parecem silenciar para que o universo possa melhor ouvir a voz dos novos poetas franceses.

O mundo inteiro olha para essa luz que, sozinha, aclara a noite que nos envolve.

Contudo essas vozes que se elevam tem dificuldade em se fazer ouvir.

Os poetas modernos são, portanto, criadores, inventores e profetas; pedem que examinemos o que dizem para o bem maior da coletividade a que pertencem. Voltam-se para Platão e suplicam que este lhes escute antes de bani-los da República.

A França, detentora de todo o segredo da civilização - segredo que só se sustenta graças à imperfeição dos que se esforçam em adivinhá-lo - tornou-se por isso, para a maior parte do mundo, um seminário de poetas e artistas, que aumentam a cada dia o patrimônio de sua civilização.

E pela verdade e alegria que irradiam, eles tornam essa civilização, senão assimilável a qualquer nação que seja, ao menos supremamente agradável a todos.

Os Franceses levam a poesia a todos os povos.

Na Itália, onde o exemplo da poesia francesa deu impulso a uma jovem escola nacional soberba de audácia e patriotismo.

Na Inglaterra, cujo lirismo se tornou insípido e por assim dizer cansado.

Na Espanha, e sobretudo na Catalunha, onde toda uma impetuosa juventude, que já produziu pintores que honram ambas as nações, acompanha com atenção a produção de nossos poetas.

Na Rússia, onde a imitação do lirismo francês deu, por vezes, lugar a promessas, o que já não surpreende ninguém.

Na América Latina, onde os jovens poetas comentam com paixão seus antepassados franceses.

Na América do Norte, à qual, em reconhecimento a Edgar Poe e Walt Whitman, missionários franceses trouxeram, durante a guerra, o elemento fecundador destinado a suscitar uma produção nova da qual não se tem ainda idéia, mas que sem dúvida não será inferior à desses dois grandes pioneiros da poesia.

A França está cheia de escolas que preservam e transmitem o lirismo, e agrupamentos onde se aprende a ser audaz; contudo uma observação se impõe: toda poesia remete, primariamente, ao povo em cuja língua ela se exprime.

As escolas poéticas, antes de se lançarem nas heróicas aventuras dos apostolados remotos, devem operar, assegurar, precisar, aumentar, imortalizar, cantar a grandeza do país em que nasceram, que lhes deu alimento e formação, por assim dizer, o que há de mais saudável, puro e melhor em seu sangue e substância.

Mas a poesia francesa moderna fez por seu país tudo o que poderia fazer?

Tem sido ela, na França, pelo menos, tão altiva e diligente quanto foi alhures?

Trata-se de questões que a história literária contemporânea não cansou de sugerir. Porém, para resolvê-las, urgiria poder calcular tudo o que o novo espírito traz em si de nacional e fecundo.

O novo espírito é, antes de tudo, inimigo do estetismo, das fórmulas e do esnobismo. Ele não luta contra qualquer escola que seja, já que não aspira ser uma escola, mas uma das grandes correntes da literatura - uma que englobaria todas as escolas desde o simbolismo e o naturalismo. Luta pelo reestabelecimento do espírito de iniciativa, pela clara compreensão de seu tempo e para abrir novas visões, do universo exterior e interior, que não sejam inferiores às que os sábios de todas as categorias descobrem todo dia e das quais retiram maravilhas.

As maravilhas nos impõem o dever de não deixar a imaginação e a sutileza poética ficarem atrás das dos artífices que aperfeiçoam uma máquina. A língua científica já está em profundo desacordo com a dos poetas. É uma situação insuportável. Os matemáticos tem o direito de dizer que seus sonhos e preocupações são quase sempre superiores às imaginações rasteiras dos poetas. Cabe aos poetas decidirem se querem ou não assumir, resolutamente, o novo espírito, fora do qual apenas restariam abertas três portas: a dos pastiches, a da sátira e a da lamentação, por mais sublime que seja.

É possível forçar a poesia a se isolar do ambiente que a cerca, a desconhecer a magnifíca exuberância da vida que os homens, graças à sua atividade, agregam à natureza e que permite mecanizar o mundo da forma mais incrível?

O novo espírito é o do próprio tempo em que vivemos. Um tempo fértil de surpresas. Os poetas querem domar a profecia, essa égua fogosa que ninguém antes conseguiu amansar.

Querem enfim mecanizar a poesia como fizeram com o mundo. Querem ser os primeiros a conferir um lirismo totalmente inédito a esses novos meios de expressão que trazem à arte o movimento, ou seja, o fonógrafo e o cinema. Estão ainda na época dos incunábulos. Mas, esperemos, os prodígios falarão por si mesmos e o novo espírito, que enche de vida o universo, manifestar-se-á formidavelmente nas letras, nas artes e em todas as coisas que conhecemos.

 

NOTAS

(1) Referência à François (de Montcorbier) Villon (1431?-1463), um dos mais importantes poetas líricos franceses modernos, autor, entre outros, de Les lais (1456) e La ballade des pendus (1489).

(2) Referência ao poeta Clément Marot (1495-1544), figura seminal do renascimento francês. Recorrendo sobretudo a formas clássicas e medievais (rondós, baladas, epigramas, etc.), Marot escreveu, entre outros, Le temple de cupide (1515), Adolescence Clémentine (1532) e L'enfer (1539).

(3) Na lenda céltico-arturiana, feiticeira que, segundo a Vita merlini (1150), de Geoffrey of Monmouth, era soberana da ilha de Avalon, local fabuloso onde Artur, mortalmente ferido, teria se recolhido após sua última batalha..

(4) Poeta e comediógrafo grego (450?-388 a. C.), autor, entre outros, de As nuvens (423) e Os acarnianos (425).

(5) Poeta e romancista francês (1868-1938), autor de De l'angélus de l'aube à l'angélus du soir (1898) e Géorgiques chrétiennes (1911). Muito apegado à sua terra natal (Tournay, nos Altos Pireneus) e de temperamento essencialmente provinciano, Jammes contou, no início de sua carreira literária, com o valioso incentivo de Mallarmé e Gide.

(6) Referência provável a Louis Adolphe Thiers (1797-1827), estadista, historiador e jornalista francês, autor de Histoire de la révolution française (1824-7) e Histoire du consulat et de l'empire (1854-62).

(7) Escritor francês (1873-1907), autor, entre outros, de Ubu roi (1896) e Gestes et opinions du Docteur Faustroll, pataphysicien (1911).


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