Jorge Lucio de Campos

 

 

Francis Bacon. Sem título, 1971.

 


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É da ordem do sensus communis que a sofisticação tecnológica crescente dos meios informacionais coloque em questão os códigos, digamos, mais ´tradicionais´ de percepção-concepção do real circundante. Se, de fato, os poetas ainda buscam (porque, de um modo imponderável, necessitariam) imitar esse real, ou afundam numa faina paradoxal que os leva a diferentes níveis de mudez (considerando-se os muitos pios, murmúrios e gaguejos com que nos deparamos, em sua produção, amiúde como modalidades de dissimulação dessa mudez) ou, simplesmente, se deixam levar pelos meios-tons do jogo simulacional, o que os levaria a um comportamento, sob certa ótica, bastante questionável.

A instrumentação crescente da própria poesia a partir de outras dicções poéticas, seria, atualmente, uma de suas mais marcantes características. O problema é como, no caso da tradução de versos, normalmente apenas os bons poetas tem se mostrado capazes de nutrir-se criativamente (e ao seu texto) com a experiência do alheio, estabelecendo esgarçamentos semióticos que poderíamos considerar válidos e enriquecedores. Em torno dessa vertigem intersemiótica, típica, principalmente, das últimas duas décadas, é que transitariam - num primeiro plano de visibilidade - de forma quase indiscernível, a competência e a incompetência de nossa produção atual. Afinal, citar criativamente ou criar através da citação não é tarefa das mais fáceis comparativamente ao citar por citar, caracterizado pela gratuidade aparente que esse ato revela. Os possíveis malefícios causados em um ou por um corpo possuído não devem, necessariamente, ser atribuídos aos fantasmas que nele se instalaram.

Os equívocos aos quais se atribui a fragilidade da cultura simulacional ´pós-moderna´ advém, quase sempre, das carências discursivas e do pouco amadurecimento simbólico dos que a produzem. Os pré-modernismos, o Modernismo de 22, a Geração de 45, o Concretismo e a Poesia-práxis têm sido apontados como alguns desses fantasmas que ‘assolariam’ a nossa (anti)produção atual. Contudo, a geração poética do ´neo´ (genealogicamente enfileirada em termos das décadas de 80 e 90) vem apenas acompanhando uma tendência típica de nosso Zeitgeist. Importaria muito mais, no caso, avaliar a sua capacidade de lidar, gerenciar os códigos deste espírito que assola, segundo alguns (ou abençoa, segundo outros), o nosso momento histórico.

O romantismo pôs no colo de seus escritores e pintores um desafio tão árduo quanto o de agora: buscar a originalidade pela originalidade em nome da genialidade pela genialidade e somente alguns deles (é claro que o número dos que tentaram e falharam decerto foi maior do que o dos bem-sucedidos) conseguiram, com efeito, processá-lo com eficiência. Hoje pode-se dizer que, se não ocorre o mesmo fenômeno, as diferenças também não chegam a ser tão decisivas. Diante da disseminação repertorial, cabe a cada um de nossos poetas decidir, sempre da maneira mais criativa possível, o que fazer com (e não estou me referindo à turba infinita das fantasmagorias de menor porte) os megaespectros de Pessoa, Oswald, Cummings, Cabral, dos irmãos Campos ou de quem quer que seja. Importa saber, como corretamente afirmou Ivan Junqueira, que é no equilíbrio alcançado por uma coisa e outra (forma e conteúdo) que se revela o grande poeta. Um dos equívocos da poesia de participação social é justamente este: em nome de uma utopia humanitária desdenha-se da forma e, a partir daí, compromete-se a possibilidade de transmissão artística ou de fruição do objeto estético. Enfim, se somos artistas, não podemos jamais renunciar à beleza em que consiste o matrimônio indissolúvel entre forma e fundo.


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Do período paleolítico ao theatrum pós-moderno, de estrito servidor da sociedade (cf. figuras do artista-feiticeiro, do artista-sacerdote, do artista-cortesão e do artista-funcionário, entre outras) ao confortável status de franco-atirador ou de usufrutuário-manipulador de simulacros lúdicos, o artista continuará sendo ainda assim, segundo Jean Cassou, já alguém em que se apercebe uma singularidade específica e a obra que produz pode(rá) ser por nós (de algum modo) desembaraçavel de significados e intenções para nos aparecer como uma obra de arte. A fuga da estandardização seria, portanto, um critério consistente para avaliar, em termos qualitativos, a atual produção poética brasileira. Não são muitos os que tem demonstrado esse dinamismo em suas coletâneas. Como não poderia deixar de ser, a maioria, numa condição in progress, esbarra em suas próprias indefinições, desinformações e mesmo em arroubos esteticamente inócuos. Não são muitos também os que ousam, optando pelas vias da transgressão e da transcendência, ou melhor, pelas vias da densidade transgressiva e, algo paradoxal (mas apenas à primeira vista), da positividade transcendental. Afinal, estas vias estão entre as mais árduas e, ainda por cima, as próprias idéias de transgressão (assim como a de experimentação) e transcendência se viram anodinizadas pela de seu simulacro e hoje transgredir e transcender são, com freqüência, no mínimo práticas vazias e gratuitas e, no máximo, algo vetusto e enigmático aos olhos mais jovens.

A questão que ora parece se impor, de maneira imediata - quase premente e por dentro -  na poesia brasileira contemporânea, é a mesma que se pretende também urgente fora dela: na prosa, no pensamento, nas falas, nos hábitos... Importa, enfim, decidir logo entre duas estratégias de deslocamento (não implicando nenhuma delas o que, no caso, deveria ser levado em conta, ou seja, o afrontamento). Boa parte de nossos poetas mais jovens vem se embaraçando com um penoso dilema: recuar ou avançar? Poucos são os que se colocam a hipótese mais ‘inteligente’ de vencê-lo, permanecendo no código, retomando-o com paciência – aos poucos, mas sempre - na medida de suas necessidades intrínsecas de (re)dinamização; (re)operando-o no presente, na potencialidade inesgotável do agora.

Em verdade, não são muitos - nunca foram ou deverão ser - os poetas que podemos considerar excelentes. Se fosse possível definir o lançar poético como um risco (assim como todos os demais lançares discursivos, aí inclusos os escritos e os não-escritos) - um que envolveria o descortinamento dos próprios mistérios pessoais mediante a via equilibrante do rigor - então não poderia restar dúvidas quanto a isso. Se, por um lado, é alto o número dos que se arriscam, irresponsavelmente, na gratuidade do gesto de quem apenas pensa porque pensa ou anseia porque anseia fazer poesia, expondo-se, amiúde, ao ridículo e ao rebaixamento, pelo outro, são raros, felizmente, os que se arriscam no sentido proposto e é mais do que normal (e saudável) que assim ocorra.

Como já tive a oportunidade de externar, numa outra ocasião, penso que o processo criativo (não só em termos poéticos) não pode, sob pena de se autodesqualificar, deixar de marcar uma invariável positividade, sendo criativo o artista que consegue conceder (direta ou indiretamente) à sua obra a capacidade de afirmação e instauração do sentido. Por detrás da complexidade da fatura da boa poesia (assim como da boa pintura, etc.), estão dois agenciamentos mínimos fundamentais: a intuição (o bom poeta é sempre aquele bem-sucedido na extração-captura ordenadora do sentido bruto-caótico das coisas) e a expressão (o bom poeta é sempre aquele que sabe expressar, adequadamente - de forma a torná-lo esteticamente compartilhável - o resultado 'concreto' daquela extração-captura). Dentro de tal contexto, a valoração de um poema se mostra, então, muito relativa. Depende, enormemente, dos elementos mínimos disponibilizados, no ato do encontro, pelo poeta e pelo leitor-avaliador de sua poesia. Isso sem contar com os aspectos psicológicos que, inevitavelmente, interferem no processo, acelerando-o ou estancando-o. A grande arte nunca foi e ainda não é da ordem das multidões, pois sua universalidade não pode ser 'fabricada', apesar do esforço, cada vez mais agressivo, dos meios de comunicação e dos agentes do mercado. A grande poesia é da ordem solitária dos indivíduos-neles-mesmos e de suas clandestinas partilhas interpessoais.


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A meu ver, nas duas últimas décadas, algumas dicções iniciaram, em nosso país, a gestação de um instigante savoir-faire poético. Não costumo citar nomes e, portanto, não vou fazê-lo aqui, pois isso importará pouco num diagnóstico tão breve como este que proponho. Nomear, segundo o gosto, os meus ´bons´ e ´maus´ poetas, meus ´eleitos´ e ´desafetos´, meus ‘parceiros’ e ‘êmulos’ de nada serviria: antes soaria como um ato adicional de hipocrisia e amadorismo. Estou certo de que os ´competentes´ tem percepção disso, assim como, quero crer, os ´incompetentes´... Sendo minimamente espertos, eles não deverão se iludir com a marcha oscilatório-impressionista da crítica constituída que, com freqüência, se verá tentada a manipulá-los e reterritorializá-los a seu bel-prazer.

Também não gostaria de recorrer a categorias ou, o que é bem pior, a rótulos. Muitos já o fazem, professoralmente ou não - bem-intencionadamente ou não - visando dotá-los, diante das massas, de uma visibilidade, aqui e ali, desnecessária, mesmo venenosa... Em minha opinião, falar de uma geração 80, ou de uma geração 90, não ajudará em nada, visto que concordo com a aferição, já feita por alguém, de que os poetas em questão não constituem nada parecido com uma geração - se é que isso, num tempo fragmentado e veloz como o de hoje, ainda pode existir. Existem laços pessoais, encontros em revistas e coleções, mas no geral o trabalho é solitário, como, aliás, deve ser mesmo.

Entretanto, em momentos como estes, de crise e impasse criativos, é que os rótulos costumam proliferar, inevitavelmente, ao sabor dos consensos plantados pela mídia. Neles, o prefixo ‘neo’ é usado a rodo. Fala-se, por exemplo e muito, de uma vertente neoconservadora (ou ‘metafísico-formalista’ ou ‘clássico-revisionista’, como alguns preferem, ou, ainda, de tudo isso ao mesmo tempo, num corpo único de idéias e efeitos), espécie de monstro de mil braços que, brandindo todo tipo de signos historicamente registrados, grita: "eles ainda estão aqui; é preciso considerá-los sempre, respeitar sua longevidade"; fala-se muito também de uma vertente neoconstrutivista, atrelada ao epigonismo do som e da imagem, dos jogos da materialidade significante, intrinsecamente sectária do impacto das novas tecnologias da comunicação visual sobre a sensibilidade pós-moderna; e de uma vertente neotropicalista (ou ‘dionisíaca’, como querem outros), comprometida com a liberdade do traço e com o delírio da composição, que trataria a cultura como um farto mosaico a partir do qual sempre seria possível extrair fragmentos-cacos e rumar para novas (nem tanto assim) bricolagens poéticas, para nomadismos simbólicos em cujas deambulações, muitas vezes, dar-se-iam antes tropeços que achados; e, ainda, de uma vertente acadêmico-culturalista, mais atrelada a discussões conceitualmente setorizadas (como seria o caso, hoje, da questão dos gêneros, das etnias, do feminismo, do homoerotismo, etc.) do que ao fato poético em si, e que o ultrapassa, seguidas vezes, sobrelevando-o, ao tratá-lo como um mero veículo de expressão de tratamentos temáticos; fala-se ainda dos neomalditos, dos neo-engajados, de uma (com freqüência, não intencional) ‘má poesia’, antes envolvida com uma agressiva predisposição psicológica frente ao social do que com qualquer outra coisa e, dos seus antípodas naturais, os neo-esteticos, marcamente envolvidos com uma tentativa de preservação do ‘museu imaginário’, da perícia formal, enfim, da belle poésie...

Por conseguinte, no calor da construção desta fala, me permito dizer que a poesia concebida hoje, no Brasil, a exemplo do que ocorre em várias outras paragens, tem sido recorrentemente marcada pelo que chamaria, em caráter provisório, de fenda da indecidibilidade. Se como outros ainda afirmam, a criação poética envolveu sempre  - e continuará a assim fazê-lo, em maior ou menor grau - um certo desejo de imitação da realidade, é natural que a fatura contemporânea reflita os percalços de um momento sociocultural simbolicamente tão marcado, como o nosso, por uma crise de percepção-concepção que, por sua agudeza, traz no bojo uma grave e inevitável crise de identidade.

* Este texto integrou, originalmente, uma ampla entrevista concedida ao poeta brasileiro Floriano Martins.


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