Jorge Lucio de
Francis
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É da
A
instrumentação crescente da própria poesia a partir de outras dicções poéticas,
seria, atualmente, uma de suas mais marcantes características. O problema é como, no caso da tradução de versos,
normalmente apenas os bons poetas tem se mostrado capazes de nutrir-se
criativamente (e ao seu texto) com a experiência do alheio, estabelecendo
esgarçamentos semióticos que poderíamos considerar válidos e enriquecedores. Em torno dessa
vertigem intersemiótica, típica, principalmente, das últimas duas décadas, é
que transitariam - num primeiro plano de visibilidade - de forma quase
indiscernível, a competência e a incompetência de nossa produção atual. Afinal, citar criativamente ou criar através da citação
não é tarefa das mais fáceis comparativamente ao citar por citar, caracterizado
pela gratuidade aparente que esse ato revela. Os possíveis malefícios causados
em um ou por um corpo possuído não devem, necessariamente, ser atribuídos aos
fantasmas que nele se instalaram.
Os equívocos aos quais
se atribui a fragilidade da cultura simulacional ´pós-moderna´ advém, quase
sempre, das carências discursivas e do pouco amadurecimento simbólico dos que a
produzem. Os pré-modernismos, o Modernismo de 22, a Geração de 45, o
Concretismo e a Poesia-práxis têm sido apontados como alguns desses fantasmas
que ‘assolariam’ a nossa (anti)produção atual. Contudo, a geração poética do
´neo´ (genealogicamente enfileirada em termos das décadas de 80 e 90) vem
apenas acompanhando uma tendência típica de nosso Zeitgeist. Importaria
muito mais, no caso, avaliar a sua capacidade de lidar, gerenciar os códigos
deste espírito que assola, segundo alguns (ou abençoa, segundo outros), o nosso
momento histórico.
O romantismo pôs no
colo de seus escritores e pintores um desafio tão árduo quanto o de agora: buscar
a originalidade pela originalidade em nome da genialidade pela genialidade
e somente alguns deles (é claro que o número dos que tentaram e falharam decerto
foi maior do que o dos bem-sucedidos) conseguiram, com efeito, processá-lo com
eficiência. Hoje pode-se dizer que, se não ocorre o mesmo fenômeno, as
diferenças também não chegam a ser tão decisivas. Diante da disseminação
repertorial, cabe a cada um de nossos poetas decidir, sempre da maneira mais
criativa possível, o que fazer com (e não estou me referindo à turba infinita
das fantasmagorias de menor porte) os megaespectros de Pessoa, Oswald,
Cummings, Cabral, dos irmãos Campos ou de quem quer que seja. Importa saber,
como corretamente afirmou Ivan Junqueira, que é no equilíbrio alcançado por
uma coisa e outra (forma e conteúdo) que se revela o grande poeta. Um dos
equívocos da poesia de participação social é justamente este: em nome de uma
utopia humanitária desdenha-se da forma e, a partir daí, compromete-se a
possibilidade de transmissão artística ou de fruição do objeto estético. Enfim,
se somos artistas, não podemos jamais renunciar à beleza em que consiste o
matrimônio indissolúvel entre forma e fundo.
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Do período paleolítico
ao theatrum pós-moderno, de estrito servidor da sociedade (cf. figuras
do artista-feiticeiro, do artista-sacerdote, do artista-cortesão e do
artista-funcionário, entre outras) ao confortável status de franco-atirador ou
de usufrutuário-manipulador de simulacros lúdicos, o artista continuará sendo
ainda assim, segundo Jean Cassou, já alguém em que se apercebe uma
singularidade específica e a obra que produz pode(rá) ser por nós (de algum
modo) desembaraçavel de significados e intenções para nos aparecer como uma
obra de arte. A fuga da estandardização seria, portanto, um critério
consistente para avaliar, em termos qualitativos, a atual produção poética
brasileira. Não são muitos os que tem demonstrado esse dinamismo em suas coletâneas.
Como não poderia deixar de ser, a maioria, numa condição in progress,
esbarra em suas próprias indefinições, desinformações e mesmo em arroubos
esteticamente inócuos. Não são muitos também os que ousam, optando pelas vias
da transgressão e da transcendência, ou melhor, pelas vias da densidade
transgressiva e, algo paradoxal (mas apenas à primeira vista), da positividade
transcendental. Afinal, estas vias estão entre as mais árduas e, ainda por
cima, as próprias idéias de transgressão (assim como a de experimentação) e
transcendência se viram anodinizadas pela de seu simulacro e hoje transgredir e
transcender são, com freqüência, no mínimo práticas vazias e gratuitas e, no
máximo, algo vetusto e enigmático aos olhos mais jovens.
A questão que ora parece
se impor, de maneira imediata - quase premente e por dentro - na poesia
brasileira contemporânea, é a mesma que se pretende também urgente fora dela:
na prosa, no pensamento, nas falas, nos hábitos... Importa, enfim, decidir logo
entre duas estratégias de deslocamento (não implicando nenhuma delas o que, no
caso, deveria ser levado em conta, ou seja, o afrontamento). Boa parte
de nossos poetas mais jovens vem se embaraçando com um penoso dilema: recuar ou
avançar? Poucos são os que se colocam a hipótese mais ‘inteligente’ de
vencê-lo, permanecendo no código, retomando-o com paciência – aos poucos, mas
sempre - na medida de suas necessidades intrínsecas de (re)dinamização;
(re)operando-o no presente, na potencialidade inesgotável do agora.
Em verdade, não são
muitos - nunca foram ou deverão ser - os poetas que podemos considerar
excelentes. Se fosse possível definir o lançar poético como um risco (assim
como todos os demais lançares discursivos, aí inclusos os escritos e os
não-escritos) - um que envolveria o descortinamento dos próprios mistérios
pessoais mediante a via equilibrante do rigor - então não poderia restar
dúvidas quanto a isso. Se, por um lado, é alto o número dos que se arriscam,
irresponsavelmente, na gratuidade do gesto de quem apenas pensa porque pensa ou
anseia porque anseia fazer poesia, expondo-se, amiúde, ao ridículo e ao
rebaixamento, pelo outro, são raros, felizmente, os que se arriscam no sentido
proposto e é mais do que normal (e saudável) que assim ocorra.
Como já tive a oportunidade
de externar, numa outra ocasião, penso que o processo criativo (não só em
termos poéticos) não pode, sob pena de se autodesqualificar, deixar de marcar
uma invariável positividade, sendo criativo o artista que consegue conceder
(direta ou indiretamente) à sua obra a capacidade de afirmação e instauração do
sentido. Por detrás da complexidade da fatura da boa poesia (assim como da boa
pintura, etc.), estão dois agenciamentos mínimos fundamentais: a intuição
(o bom poeta é sempre aquele bem-sucedido na extração-captura ordenadora do
sentido bruto-caótico das coisas) e a expressão (o bom poeta é sempre
aquele que sabe expressar, adequadamente - de forma a torná-lo esteticamente
compartilhável - o resultado 'concreto' daquela extração-captura). Dentro de
tal contexto, a valoração de um poema se mostra, então, muito relativa.
Depende, enormemente, dos elementos mínimos disponibilizados, no ato do
encontro, pelo poeta e pelo leitor-avaliador de sua poesia. Isso sem contar com
os aspectos psicológicos que, inevitavelmente, interferem no processo,
acelerando-o ou estancando-o. A grande arte nunca foi e ainda não é da ordem
das multidões, pois sua universalidade não pode ser 'fabricada', apesar do
esforço, cada vez mais agressivo, dos meios de comunicação e dos agentes do
mercado. A grande poesia é da ordem
solitária dos indivíduos-neles-mesmos e de suas clandestinas partilhas
interpessoais.
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A meu ver, nas duas
últimas décadas, algumas dicções iniciaram, em nosso país, a gestação de um
instigante savoir-faire poético. Não costumo citar nomes e, portanto, não vou
fazê-lo aqui, pois isso importará pouco num diagnóstico tão breve como este que
proponho. Nomear, segundo o gosto, os meus ´bons´ e ´maus´ poetas, meus
´eleitos´ e ´desafetos´, meus ‘parceiros’ e ‘êmulos’ de nada serviria: antes
soaria como um ato adicional de hipocrisia e amadorismo. Estou certo de que os
´competentes´ tem percepção disso, assim como, quero crer, os
´incompetentes´... Sendo minimamente espertos, eles não deverão se iludir com a
marcha oscilatório-impressionista da crítica constituída que, com freqüência,
se verá tentada a manipulá-los e reterritorializá-los a seu bel-prazer.
Também não gostaria de
recorrer a categorias ou, o que é bem pior, a rótulos. Muitos já o fazem,
professoralmente ou não - bem-intencionadamente ou não - visando dotá-los,
diante das massas, de uma visibilidade, aqui e ali, desnecessária, mesmo
venenosa... Em minha opinião, falar de uma geração 80, ou de uma geração 90,
não ajudará em nada, visto que concordo com a aferição, já feita por alguém, de
que os poetas em questão não constituem nada parecido com uma geração - se é
que isso, num tempo fragmentado e veloz como o de hoje, ainda pode existir.
Existem laços pessoais, encontros em revistas e coleções, mas no geral o
trabalho é solitário, como, aliás, deve ser mesmo.
Entretanto, em
momentos como estes, de crise e impasse criativos, é que os rótulos costumam
proliferar, inevitavelmente, ao sabor dos consensos plantados pela mídia.
Neles, o prefixo ‘neo’ é usado a rodo. Fala-se, por exemplo e muito, de uma
vertente neoconservadora (ou ‘metafísico-formalista’ ou
‘clássico-revisionista’, como alguns preferem, ou, ainda, de tudo isso ao mesmo
tempo, num corpo único de idéias e efeitos), espécie de monstro de mil braços
que, brandindo todo tipo de signos historicamente registrados, grita:
"eles ainda estão aqui; é preciso considerá-los sempre, respeitar sua
longevidade"; fala-se muito também de uma vertente neoconstrutivista,
atrelada ao epigonismo do som e da imagem, dos jogos da materialidade
significante, intrinsecamente sectária do impacto das novas tecnologias da
comunicação visual sobre a sensibilidade pós-moderna; e de uma vertente neotropicalista
(ou ‘dionisíaca’, como querem outros), comprometida com a liberdade do traço e
com o delírio da composição, que trataria a cultura como um farto mosaico a
partir do qual sempre seria possível extrair fragmentos-cacos e rumar para
novas (nem tanto assim) bricolagens poéticas, para nomadismos simbólicos em
cujas deambulações, muitas vezes, dar-se-iam antes tropeços que achados; e,
ainda, de uma vertente acadêmico-culturalista, mais atrelada a
discussões conceitualmente setorizadas (como seria o caso, hoje, da questão dos
gêneros, das etnias, do feminismo, do homoerotismo, etc.) do que ao fato
poético em si, e que o ultrapassa, seguidas vezes, sobrelevando-o, ao tratá-lo
como um mero veículo de expressão de tratamentos temáticos; fala-se ainda dos neomalditos,
dos neo-engajados, de uma (com freqüência, não intencional) ‘má poesia’,
antes envolvida com uma agressiva predisposição psicológica frente ao social do
que com qualquer outra coisa e, dos seus antípodas naturais, os neo-esteticos,
marcamente envolvidos com uma tentativa de preservação do ‘museu imaginário’,
da perícia formal, enfim, da belle poésie...
Por conseguinte, no calor da construção desta fala, me
permito dizer que a poesia concebida hoje, no Brasil, a exemplo do que ocorre
em várias outras paragens, tem sido recorrentemente marcada pelo que chamaria,
em caráter provisório, de fenda da indecidibilidade. Se como outros
ainda afirmam, a criação poética envolveu sempre - e continuará a assim
fazê-lo, em maior ou menor grau - um certo desejo de imitação da realidade, é
natural que a fatura contemporânea reflita os percalços de um momento
sociocultural simbolicamente tão marcado, como o nosso, por uma crise de
percepção-concepção que, por sua agudeza, traz no bojo uma grave e inevitável
crise de identidade.
* Este texto integrou,
originalmente, uma ampla entrevista concedida ao poeta brasileiro Floriano
Martins.