Jorge Lucio de Campos

 


Paul Klee. Ad parnassum, 1932.


À certa altura de seu Texto (mais especificamente em A transparência do mal: Ensaio sobre os fenômenos extremos), Jean Baudrillard direciona as baterias anti-aéreas para a produção artística contemporânea, afirmando que esta "prolifera por toda parte", sustentada por um discurso que, por sua vez, proliferaria "mais depressa ainda, mas com seu caráter próprio, sua aventura, sua força de ilusão, sua capacidade de recusar o real e de opor ao mesmo outro cenário, onde as coisas (…) podem perder seu sentido, exceder a própria finalidade e, num ímpeto de sedução, reunir-se à forma ideal, nem que seja a da própria destruição".

O que pensar de um fenômeno com tais características? O que dizer de suas possíveis conseqüências? Em Cultura ou lixo? Uma visão provocativa da arte contemporânea, o crítico James Gardner (colaborador de periódicos notáveis como The New Criterion e Artnews), se propõe a retomar tais questões e o faz de forma instigante. A exemplo de dois outros títulos - já lançados, inclusive, no Brasil (caso de A palavra pintada, de Tom Wolfe, e de O circo da ambição, de John Taylor) - deverá causar polêmica. Trata-se de um novo petardo contra a mistificação mercadológica há muito plantada no circuito mundial, num crescendo que se arrasta há, no mínimo, três décadas (especialmente, como ele sustenta, entre as artes visuais).

O texto, concebido num estilo implacável - simultaneamente fluido e cortante - utiliza, provocativamente (assim justificando seu subtítulo), o termo 'fraude' em seu diagnóstico das mazelas artísticas hodiernas. Na certa, haverá quem tente, em função dessa particularidade, acusá-lo de ser 'jornalístico', 'sensacionalista' e 'oportunista'. No frigir dos ovos, porém, isso acabará não tendo a menor importância: em primeiro lugar, porque, no fundo, é exatamente o que ele se propõe a ser (e numa boa!); em segundo lugar, porque falar mal (ou bem) da arte hoje em dia (levando-se em conta o estado de penúria da mesma neste fim de século) não parece ser assim tão complicado ou mais difícil (e comprometedor) que aplicar uma sova num inofensivo cadáver.

De um modo ou de outro, Gardner não deixa dúvida quanto às suas reais intenções. Ao analisá-lo, algumas coisas chamaram-me, de imediato, a atenção: a simplicidade cáustica, por exemplo, de suas colocações sobre o fenômeno artístico em si - num determinado momento, chega a definir a arte "(…) nela mesma, (como uma) entidade abstrata e gasosa que emerge de uma massa de artefatos criados e atos cometidos em seu nome"; em outro, concebe o seu Mundo como "tudo aquilo que tem a ver com a arte menos a arte".

Cultura ou lixo? se propõe, antes de tudo, a detalhar o percurso (infestado, como esses adventures que os micreiros hoje tanto curtem, por um infinidade de meandros movediços e buracos negros) que a arte precisa vencer no interior da cultura massiva para adquirir alguma visibilidade. É em função disso, que ele privilegia, o tempo todo, binômios conceituais como 'arte' e 'oportunismo', 'obra' e 'exibicionismo', 'discurso' e 'banalização' (encarnados como nunca nos seios fartos da mentalidade 'pós-moderna'). Com esse propósito, Gardner nos alerta de que, no fundo, "(trata é de uma) arte ambiciosa e sem importância. E sem importância porque não (possuidora de uma) ambição artística, (mas de uma ambição) política, psicológica, pornográfica ou qualquer outra 'coisa'".

No prólogo, em que predomina um tom quase ameaçador, ele anuncia sua intenção de 'livrar a cara' de apenas uns poucos (em sua maioria veteranos) artistas (além de Richard Serra e Anish Kapoor, inclui, felizmente, na lista dos redimidos, Pat Steir, autora de The Brueghel Series [A Vanitas of Style] Polychrome, de 1982-4, conjunto de painéis sobre o qual pacientemente debrucei-me há tempos e que me causou uma excelente impressão). Por outro lado, ao lidar com uma realidade cultural tão materialmente distinta da nossa, como a norte-americana, em que "as escolas de Belas-Artes formam todos os anos trinta e cinco mil novos profissionais" e onde "praticamente uma vez por semana é inaugurado um novo museu que vai juntar-se aos outros, visitados por quarenta milhões de pessoas anualmente", Cultura ou lixo? pode até soar um pouco estranhamente para os leitores brasileiros mais sensíveis. Digo isso porque nenhum de nós ignora o quão combalida (por outros motivos, diga-se de passagem) é o nosso factum comparativamente àquele. Falar de um Mundo da Arte em termos tupiniquins chega a ser algo pueril. Nas últimas décadas, nos contentamos, na melhor das hipóteses, com fenômenos incidentais como a recente inauguração do Museu de Arte Contemporânea, em Niterói, que, por sinal, independentemente da qualidade (a meu ver, duvidosa) do acervo que abriga, vem se popularizando muito mais por sua exuberância arquitetônica.

Em função disso, creio que algumas das hipóteses sustentadas - seminais para a argumentação de Gardner (como a de uma possível ascensão anti-renascentista das artes visuais sobre a música e a poesia, etc.) - podem nos parecer 'artificiais'. O que significaria, grosseiramente, que se arriscam a fazer-nos lembrar (piadisticamente às avessas) aquele vetusto ditado que afirma "em terra de cego ser rei quem tem um dos olhos". A não ser, é claro, que consigamos extrair algum glamour do processo de sucateamento e do estado de precariedade que, historicamente, tem sido impostos à nossa produção.

Tais constatações podem, de fato, causar uma sensação de desconforto e desânimo. Mas, de fato, deveriam? Creio que o episódio de Chris Burden (cujos atos patéticos de autopromoção em nome da arte são por Gardner classificados como "pequenos esquetes cósmicos") - uma performance idiota que serviu apenas para supervalorizar um reles bule de café disputado aos tapas por beócios endinheirados e finalmente adquirido por algum insensato (nem tanto assim, se levarmos em conta que este poderá negociá-lo mais adiante, por um valor ainda maior, com outros insensatos mais insensatos ainda) por módicos 24.000 dólares - indicia bem o nível de patologia mental de uma cultura 'estrangeira' cujos urbanóides mais parecem criancinhas tolas e deslumbradas num megashopping que, com os bolsos cheios de moedas, se arriscam a morrer de indigestão ou, mesmo, por uma overdose de pipocas e cheesebúrgueres. Sei lá…

Um dos pontos altos do livro é a analogia que Gardner propõe entre arte (museus) e religião (igrejas): "Como um bom número de escritores já observou nos últimos anos, a arte, que começou como condutor da religião, agora se transformou no substituto dela. Mas, ao contrário da religião tradicional, que distinguia os meios dos fins e o processo da efetivação, é, ao mesmo tempo, a inspiração para esse sentido religioso, seu condutor e seu objetivo. Isso talvez (explicando) a mistificação da obra de determinados artistas, cujos objetos pessoais ganharam uma nova aura nos tempos do consumo desenfreado".

À essa altura da análise do livro, veio-me, novamente, à cabeça a lembrança do MAC, ou melhor, das duas primeiras ocasiões em que o visitei. Sirvo-me dela para ilustrar esse (e ainda outro) ponto relevante. Na primeira delas, oprimido pela confusão imperante no interior do museu e pelo vai-e-vém de curiosos presentes no dia da inauguração, pareceu-me que minha impressão do acervo havia sido gravemente prejudicada pelo mau humor oriundo do estresse a que me submetera. Na segunda (uma espécie de nova chance que impus a mim mesmo), pude confirmar - e sem atropelos e com uma certa tristeza - o diagnóstico inicial: contei nos dedos, entre as dezenas de obras expostas (muitas delas assinada por artistas de renome) as que eu considerava possuirem alguma qualidade. Mais tarde, ao partilhá-lo com alguns colegas, notei sua reação negativa a esse julgamento. Respeitando ou não o mérito das alegações, o fato é que me vi encarnando o corpo rijo de um Ruskin à mercê da revolta 'sempre-otimista' de vários Baudelaire. Pude entender também, e antes da hora, uma das máximas atribuídas por Gardner à arte atual: "Melhor louvar mil nulidades como o novo Picasso do que não perceber um hipotético novo Picasso".

De qualquer modo, desfilando comentários sobre a obra (as idéias, os valores e a postura) de artistas cuja atuação foi (e ainda é) marcante, em termos internacionais, ao longo dos últimos vinte anos (ali estão David Hockney, Eric Fichl, Cindy Sherman, Jenny Holzer, Jeff Koons, Mike Bidlo, Allan McCollum, Robert Maplethorpe, Richard Prince, Gilbert e George, Hans Haake, Leon Golub, David Salle, entre outros) Cultura ou lixo? revela-se um excelente complemento, no que tange ao balizamento estético do citado período, ao utilíssimo Arte contemporânea, de Klaus Honnef.

Denunciando assim, a seu modo, o mercantilismo que vampiriza a obra de arte contemporânea, assim como mapeando seus principais riscos, Cultura ou lixo? parece dizer a que veio. Caso após caso, dos estrelismos de Burden ao fetichismo das unhas de Joseph Beuys, do rocambolismo dos lençóis ensangüentados de Hermann Nitsch às figurinhas 'artísticas' de Todd Alden, o que Gardner vê é uma mistificação sem limites que passa a quilômetros de distância de uma legítima efervescência criativa.

Em tempos em que a preguiça e a incompetência obnubilam a busca dos ideais da forma, e até que esse fenômeno volta a se dar novamente (que Deus me ouça!), a leitura de textos como o de Gardner certamente vale o esforço. Um que, não tendo papas na língua, quer manter acesa uma pontinha de esperança: a de que alguém (ou alguns ou, quem, sabe muitos) desperte e comece a agir. É do que mais necessitamos agora: não de mirabolâncias e narcisismos, mas de ação em seu sentido simples e vital.  

Jornal do Commercio, 22/12/96.


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