Jorge Lucio de
Há muito a arte brasileira contemporânea vem sendo, inexplicavelmente, ignorada por nossas editoras. Basta consultar o material bibliográfico referido nos pouquíssimos livros sobre o assunto ora disponíveis - a maior parte do já feito não foi sequer reeditado - nas livrarias para se ter uma idéia desse triste fenômeno. Os títulos são praticamente os mesmos, se repetindo quase à exaustão (o que denunciaria, antes de mais nada, a falta de opções de nossos pobres pesquisadores), resumindo-se, em sua grande maioria, a estudos de ocasião incluídos em 'voláteis' tiragens de catálogos expositivos ou episódicas (e superficiais) matérias jornalísticas.
Sob este aspecto, o ensaio de Hélio Márcio Dias Ferreira sobre a obra de Ivan Serpa possui, em função dessa inacreditável distorção (cuja responsabilidade não se limita às editoras, atingindo, na verdade, a todos nós), o mérito imediato de se oferecer como 'mais uma' fonte de consulta da qual poderemos dispor acerca de nosso próprio nariz artístico. Ironicamente um fato que deveria ser corriqueiro merece, em função de seu quase ineditismo, ser brindado. Isso não apenas por ter sido realizado - os nossos poucos cursos de pós-graduação em arte não tem deixado de produzir boas pesquisas - mas por ter obtido o tão almejado reconhecimento editorial (e nisso deve-se louvar a iniciativa da EDUFF), por estar conseguindo atingir uma audiência mais ampla que a do circuito meramente acadêmico, etc. etc.
O texto possui, é claro, méritos intrínsecos. Além de tornar acessível a poética de um dos talentos de nosso cenário mais recente e investir numa de suas fases menos exploradas e reconhecidas criticamente (a chamada 'fase negra' ou 'crepuscular', como, informa o autor, o próprio Serpa preferia denominá-la), trata-se de um ensaio bem escrito, que funciona, portanto, como uma lúcida introdução não só à obra deste último, mas à problemática artística contemporânea como um todo.
Serpa foi um dos primeiros pintores cariocas a flertarem com a abstração geométrica. Foi também um dos criadores do emblemático Grupo Frente - a vertente carioca do concretismo maxbilliano aportado por aqui em início dos anos 50 - que dividiu os louros da responsabilidade de instaurá-lo em termos nacionais, com o Ruptura, grupo paulista marcado pela batuta tão genial quanto ortodoxa de Waldemar Cordeiro.
Como bem reconheceu Walter Zanini, "foram constantes e profundas as rupturas de forma e conteúdo em suas obras". De fato, a inquietude talvez tenha sido o atributo mais notável de sua personalidade. Após uma inicial orientação figurativa (anos 40) e o flerte construtivista (que o projetaria de vez) na década de 50, Serpa optou pelo informalismo antes de retomar a fleuma da construção em 1968 (morreria, prematuramente, cinco anos depois).
Em função disso, é possível dizer que ele pertence a uma linhagem privilegiada de criadores que conseguiram, com invejável poder de síntese, aliar lirismo e apuro formal, crise e utopia, ao longo de sua obra (Kandinsky e Klee seriam outros exemplos). Hélio Márcio persegue com todo afinco este aspecto, catalizando-o em torno do conceito de expressionismo concreto que lhe permite - além de sustentar a hipótese de que, mesmo em sua fase mais informal, Serpa não abandonou uma visão formalista quase ingênita - fazer colocações sobre a busca serpiana "da beleza, no sentido canônico de seu significado, apesar de encontrá-la na força de uma verdade brutal que se traduzia na identidade de um sentimento puro, alimentado pelo artista", como coloca, com propriedade, o prefácio de Angela Ancora da Luz.