Jorge Lucio de Campos



Wassily Kandinsky. Composição X, 1939.


ENTRE O ENIGMA E A TRANSGRESSÃO 

A poesia de Arcangelo propõe-se como trabalho delicado e sutil sobre a linguagem. Do leitor, essa poesia exige tudo: que ele se disponha a ler, escrevendo. O leitor aqui não está sendo convidado para a tranqüila partilha de fáceis reconhecimentos, através da troca de suspiros cúmplices, de emoções ou risadas, de evocações. Ao contrário, é com seu próprio trabalho e por seu próprio esforço que ele pode entrar no jogo de Arcangelo. Aqui escrever/ler é uma operação meticulosa, filigranada, exercício, ao mesmo tempo, rigoroso e arbitrário de uma relação intranqüila com a linguagem. Decididamente, para Jorge Lucio de Campos, o jardim da poesia não é um mar de rosas. Seu terreno é intranqüilo porque é de virtualidades: tudo que a linguagem pode, fora da estabilidade dos sentidos mais evidentes.

Ler escrevendo é perseguir as trilhas indicadas pelas senhas distribuídas a cada passo, é desmontar e remontar cada enunciado, cada série de poemas, cada núcleo em que as imagens se aglutinam e se reaglutinam, aparecem e desaparecem para reaparecerem mais adiante. A leitura ativa deve realizar-se como escritura: é o que nos solicita o texto de Jorge Lucio. Ela deve ser tão rigorosa e arbitrária quanto o trabalho do poeta é jogo, jogo do sentido. Rigorosa, além disso, por não contar com nada além das senhas distribuídas. Arbitrária, porque será redistribuição, rearrumação, reconfiguração - nunca um desvendar. Os poemas de Jorge Lucio de Campos não são charadas a decifrar, mas configurações cênicas. Querer lê-los é dispor-se a reconfigurá-los para uso próprio. Porém chegar a essa reconsideração pressupõe que se percorra toda a trajetória desferida pelo livro.

"Vespa em soluços", "pardais agitados": poesia como exercício intranqüilo das virtualidades da linguagem. Nesse terreno, dois caminhos se apresentam ao poeta, ambos explorados por Jorge Lucio.

Por um lado, o sentido pode se dar como algo sempre apenas prestes a efetuar-se: é o caminho do quase-sentido. Ao enveredar por ai, o, poeta fala de incompletude, de lacuna, de fratura interna. E a poesia rende tributo à sua vocação ancestral de enigma. O sentido é sempre apenas quase-sentido porque jamais coincide com a verdade. No lugar da verdade, só existe enigma. Se a poesia é périplo ("...basta/que haja navios/no oceano..."), buscando uma verdade capaz de ser traduzida em linguagem, todo livro de poemas é, como diz o primeiro verso de Arcangelo, "outra aventura náufraga". A poesia segue assim o roteiro traçado por uma tradição modernista inaugurada por Mallarmé: linguagem que aflora à superfície para logo submergir no abismo do indizível.

O segundo caminho percorrido pelo texto de Jorge Lucio é o ultrapasse do sentido, tal como este se dá em sua versão cotidiana, banalizada. Aqui, o poeta se apossa da linguagem e a exercita como deriva, como deliberada desestabilização das coisas e das identidades, trabalhando na pauta do "pode ser". Configuram-se cenários em que "barcos tremem", em que os "talheres azuis da noite/transbordam de tempestades". O poeta chega a tornar-se figura ameaçadora para a comunidade, que tenta deter a meticulosidade perversa de seu trabalho desconstrutor: "o poeta dorme/(por temer/seu sono/apressamos/o poema)". De maneira contida e discreta, Jorge Lucio aproxima-se aqui da tradição da poesia como transgressão de limites, cujos modelos modernistas podem ser retraçados na linha que leva de Rimbaud aos surrealistas. Poesia da deriva, que deseja escapar do caminho unívoco da reta razão e pela razão da ordem. Em nosso país, Murilo Mendes foi o grande mestre no exercício desse tipo de poema desordenador da palavra pela ferida da imaginação.

A poesia de Jorge Lucio desvia-se da estrada real da reta razão para deter-se no detalhe, na bagatela, na filigrana, Ou para, num paroxismo, exteriorizar de maneira irônica e distanciada a fantasia edipiana do assassinato do pai (no poema "Elegia", que evoca o violento Jim Morrison da canção "The end" dos Doors). As fatias do corpo retalhado do pai assassinado, que o poeta ajeita cuidadosamente numa maleta, falam de um sentido estilhaçado, ultrapassado enquanto ansiedade porque estilhaçado.

A deriva do poeta pelos possíveis da linguagem se traduz em incisões sobre o corpo desta. O poema é um corte ou é suplemento, é ferida ou é agregação de elementos inesperados. Por meio dessas operações, o poeta deseja construir uma assinatura, não como indício de identidade subjetiva, mas como marca de uma passagem. A assinatura, que o poeta constrói (muitas vezes contra si próprio) e o leitor reconstrói (muitas vezes contra o próprio poeta), é o traçado dos "solos
de artesania" pelos quais se busca apropriação do inapropriável - a linguagem. A poesia, da maneira trabalhada por poetas da família à qual pertence Jorge Lucio, se constitui como híbrido estranho de palavra comunitária e palavra idiossincrática. É por isso que, no livro que o leitor começa a ler agora, a maior riqueza está no múltiplo uso de sutis e delicadas operações de distorção do sentido: deslizamentos (como a fauna que se transforma numa fauna de jipes), lacunas, suspensões, cortes bruscos, olhares oblíquos, alternâncias e, principalmente, justaposições de elementos heterogêneos. A palavra poética se compõe aqui a partir da rigorosa e arbitrária decomposição da palavra comunitária.


NEM TODA VANGUARDA É CONCEITUAL
 

A vertigem da maneira: pintura e vanguarda nos anos 80 preenche importante lacuna entre os lançamentos editoriais recentes. Seu autor até merece ser saudado, pela ousadia em abordar uma contemporaneidade artística que parece estar sendo evitada, enquanto assunto para reflexão, pelos críticos e teóricos brasileiros. Em matéria de artes plásticas recentes no Brasil, a geração 80, a canonização da pintura de Iberê Camargo e a internacionalização de nossos conceitualistas foram acontecimentos estrondosos, tiveram muita cobertura nos cadernos de cultura e de variedades, suscitaram alguma discussão nos circuitos ultra-especializados, mas causa espécie observar como foi limitada sua repercussão sobre outros campos da atividade criadora e intelectual.

Se a situação quanto aos assuntos domésticos é essa, que dirá da percepção e compreensão dos fenômenos externos. O provincianismo campeia como clima geral, embora muitos indivíduos estejam mais cosmopolitas do que nunca. O livro de Jorge Lucio de Campos representa um primeiro passo para superar essa situação à medida que apresenta as principais tendências atuais da pintura internacional e indica os caminhos teóricos com que se busca enfrentar os problemas estéticos por ela colocados. Tem valor de introdução, realizando útil compilação das múltiplas posições e visões que recortam a arte hoje, não deixando de fazer justiça às idéias de jovens e instigantes críticos brasileiros, como Nelson Brissac Peixoto e Ricardo Basbaum.

A própria pintura, a volta à pintura enquanto tal, constituiu, na verdade, um dos fatos mais marcantes da arte na década passada, pelo que significou de recuperação do prestígio do figurativo enquanto elemento novamente imprescindível ao conceito mesmo de arte, assim como pelo que representou de alento e esperança para o mercado 'assaltado' por ricaços japoneses à cata de clássicos do modernismo do início do século. Essa volta à pintura, ao quadro, criou um inesperado contraponto à predominância do espaço multimídia das instalações, herdeiras pós-modernas do espraiamento da escultura pelo ambiente circundante (lembre-se aqui a importância precursora de nosso Hélio Oiticica).

E é no âmbito das discussões sobre o pós-modernismo que Jorge Lucio baliza sua apresentação da nova pintura. Ele vê com clareza que o problema estético colocado pela pintura hoje não se refere mais ao plástico, mas sim ao imagético. A pintura já não interessa primordialmente como objeto de projeção sobre a superfície da tela de formas abstratas essenciais indicadoras de pesquisas e indagações sobre as condições de possibilidade da própria visualidade. A pintura interessa hoje como modalidade de arte imagética, embora seja crucial a tendência alternativa, que eu chamaria de visceral, representada por trabalhos como os de Julian Schnabel e Anselm Kiefer.

Em qualquer caso, o grande desafio estético-ideológico colocado ao pintor-que-pensa é localizar o valor e a função da imagem estática do quadro no interior da chamada civilização contemporânea do simulacro a la Baudrillard e Virilio, aquela cuja cultura encontra-se dominada pela proliferação infinita das imagens dinâmicas. A seleção de fotos de quadros publicada no livro dá uma idéia razoável dos múltiplos e muito interessantes caminhos pelos quais alguns dos principais nomes da pintura contemporânea enfrentam o desafio. Nomes como do próprio Schnabel, Carlo Maria Mariani, Eric Fischl, David Salle e outros.

Por outro lado, Jorge Lucio ensaia uma interpretação mais global desses caminhos lançando mão da idéia de que estaria ocorrendo uma espécie de novo maneirismo na pintura, tese que motiva o título do livro, mas que é bastante questionável, embora o maneirismo, como citação pós-moderna, apareça de modo muito evidente em Mariani.

Outra questão destacada de maneira pertinente por Jorge Lucio envolve a relação entre a cena contemporânea e a cena das duas décadas anteriores. A trilha pós-modernista torna-se fértil também aqui. Por ela, a relação entre o contexto artístico dos anos 80 e o precedente fica menos simples que do que poderia supor a mera oposição entre vanguarda e pós-vanguarda. Jorge Lucio mostra que há rupturas e continuidades entre as duas cenas. A radical fragmentação da imagem, assim como a postura parodística e dessacralizadora diante do quadro, freqüentes na pintura de hoje, pressupõem necessariamente todo o trabalho de destruição e fascinação operado por um século de vanguarda. Por outro lado, se o abstracionismo minimalista, projeto de inteligência da pintura pela própria pintura, é resolutamente abandonado, o impulso auto-reflexivo (ou metalingüístico, diriam alguns) permanece, só que agora de maneira historicista: o quadro, como diz Jorge Lucio, torna-se espaço de uma atividade rememorante da história da arte. Rememoração muitas vezes do próprio abstracionismo minimalista.

Finalmente, não se deve entender 'pós-vangurda' como sinônimo de fim da vanguarda, mas sim como indicador de uma situação em que as práticas e propostas vanguardistas tornam-se necessidade do próprio sistema. E também não se deve entender 'pós-modernismo' em oposição frontal ao modernismo. Como bem assinala Jorge Lucio, as inquietações de ambos são semelhantes, as respostas é que são diferentes.  

Italo Moriconi


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