Jorge Lucio de
Wassily
Kandinsky.
OS
João Guilherme Quental
Quando lançada, há três anos, a coleção de poesia Claro Enigma deixou uma tendência que, desde o início da década, vinha se impondo. Embora não se possa dizer que a reunião de poetas feita por Augusto Massi tenha inaugurado uma 'nova poesia brasileira', o fato é que inaugurou uma 'nova maneira de editar poesia no Brasil'. A diferença parece evidente. No entanto, apesar do tratamento gráfico de unânime qualidade, a grande importância da coleção foi mostrar que existem critérios de qualidade também para a publicação, qualidade textual, utilizados na escolha de cada um dos poetas editados. A recuperação de autores que nunca se integraram por completo aos corriqueiros rótulos de 'marginais', 'concretistas' ou da 'geração pós-45', a inestimável apresentação crítica constante das orelhas dos livros, o cuidado gráfico/editorial, tudo isso serviu para nos mostrar uma certeza que costumamos, às vezes, esquecer: que poesia brasileira é um assunto sério. O tempo de livros numa ânsia de rapidez, a inexistência de críticas periódicas nos jornais, o desprezo das grandes editoras por um material tão pouco vendável foram verdades recentes que sofreram um forte abalo. Nesse sentido, a única garantia que podemos ter é que tem melhorado incrivelmente a qualidade dos livros de poesia editados no Brasil. Começa a ser possível perceber que critérios vem sendo utilizados, na maioria das vezes critérios acadêmicos, trazidos das universidades.
O primeiro livro de poesia de Jorge Lucio de Campos, Arcangelo, é um excelente exemplo de como o mercado editorial brasileira começa a se adaptar a essa nova situação. Com um tratamento gráfico bastante semelhante ao da coleção Claro Enigma, o livro de Jorge Lucio é resultado, principalmente, do uso efetivo de critérios de publicação. Editado pela UERJ, como prêmio dado a um concurso de âmbito nacional, Arcangelo demonstra, antes de mais nada, que não houve pressa, que o trabalho foi bem feito, que é possível escapar da precariedade. "Aqui escrever/ler é operação meticulosa, filigranada, exercício, ao mesmo tempo rigoroso e arbitrário, de uma relação intranqüila com a linguagem", diz Italo Moriconi na apresentação do livro. Exato. É essa precisão e esse rigor que, paradoxalmente, espantam, em se tratando de um livro de estréia, e, ao mesmo, se mostram inevitáveis.
Conhecedor de arte, não é de se estranhar que os poemas de Jorge Lucio, construídos sempre com o uso de faits-divers, façam alusões constantes a fatos pictóricos. Imagens de Salvador Dali, Joan Miró, Gustav Klimt, Francis Bacon misturam-se, simultaneamente, com outras paisagens tanto literárias (as citações passam por T. S. Eliot, Wallace Stevens, Jorge Luis Borges, João Moura Jr. e Charles Bukowski) quanto cotidianas. Empregados em um estilo lacunoso, às vezes quase hermético, estes personagens habitam com razoável naturalidade a poesia de Arcangelo, ficando para o leitor o 'incômodo' de perceber que nenhum entendimento fluirá, que um esforço será necessário para decodificar poemas como o que dá título ao livro. A fragmentação do texto consegue, contudo, se tivermos a dedicação fundamental para se ler qualquer poeta, levar-nos em direções inesperadas.
Se a dicção de Jorge Lucio se baseia em um tipo de 'sublime', no pictórico/literário, encontra também terreno fértil numa região aparentemente mais selvagem. Se alguém já se espantou com o uso de alusões 'animalescas', feito pela poetisa norte-americana Marianne Moore, consideraria também os poemas de Jorge Lucio um exagero. Uma verdadeira "fauna" pulula nas páginas de Arcangelo: vespas em "Poema", pardais em "Arcangelo", ovelhas em "Bagatelas", lobos em "Entrenoire", tigres em "Paisagem", para citar apenas os cinco primeiros poemas do livro. Com uma carga simbólica muito forte, os bichos de Jorge Lucio cumprem uma função de aviso: que o universo humano torna-se, a cada dia, menos poético, que outros universos existem, ameaçadores sim, mas extremamente atraentes do ponto de vista estético. É curioso notar, no entanto, quão "nobres" são os seus animais. Ao contrário de um poeta como Sebastião Uchoa Leite (com quem Jorge mantém alguma afinidade), os versos de Arcangelo não são 'maculados', não vemos a presença de morcegos, baratas, mosquitos e muriçocas, tão comuns no autor de Obra em dobras, sendo, antes disso, dignos e sérios. De certo modo, isso parece indicar uma preocupação com dar uma aparência de poesia madura, vigorosa, mas previsível. Esta tentativa, justa na medida em que nada é mais lamentável do que reivindicar hoje o título de 'marginal', parece tornar-se, às vezes, uma camisa-de-força, uma obrigatoriedade que deixa do lado de fora muito do vigor que um poeta como Jorge Lucio pode produzir.
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