Jorge Lucio de Campos
Wassily
Kandinsky. Cruz branca, 1922.
ISTO NÃO É UMA ANTOLOGIA
Lucio Agra
O livro que o leitor tem nas mãos é (ou não é apenas) uma coletânea de Jorge Lucio de Campos, cuja estréia, em 1990, revelou um a nova dicção forte na poesia brasileira. A tese que me empenharei em demonstrar aqui é a de que Jorge Lucio de Campos fez mais do que simplesmente reunir sua produção: construiu e desconstruiu a si mesmo, enquanto personagem criador de poesia, montou e desmontou o ato de sua propria produção.
Belveder tem, como porta de entrada, Tauromaquia. Não se trata apenas do trabalho mais bem realizado. É também, um intrincado exercício de referências (pictóricas) cruzadas. Quem acompanha a produção de Jorge Lucio de Campos sabe que isto não é novidade. A tendência à fanopéia, motivada pelas imagens que, afinal, fazem parte do cotidiano profissional de um autor também estudioso das artes plásticas é por isso, até certo ponto, uma decorrência natural. Quero, porém, pedir ao leitor a permissão para um pequeno excurso semiótico: C. S. Peirce, fundador desta ciência de decifrações, propõe o ícone, signo cuja proximidade com seu objeto é intensa, como o primeiro estágio de uma cadeia da qual o ápice lógico é o simbolo. O exemplo mais consumado desta última categoria é a palavra. Sua convencionalidade, porém, nunca esconde completamente a origem icônica. O ícone é freqüentemente citado a respeito das artes visuais, mas é tambem a incômoda etimologia da palavra. Ele subverte o artefato arbitrário que, em alguma era remota, evocava seu objeto. O poeta sempre sofreu e tematizou esta condição de sua matéria-prima e, no seculo XX, pode-se dizer que tal problema é marca indelével da Poética.
"Tauromaquia", nome de uma série de trabalhos de Picasso, não sem razão aponta para uma estética da desmontagem. No cubismo revelavam-se as convenções da visualidade ocidental, aqui as palavras lutam contra os objetos. Sem levar em conta diferenças de resto muito flagrantes, apenas lembro que este é um dos topoi modernistas mais importantes. Refiro-me, por exemplo, ao que A. M. Ripellino, a proposito de Maiakovski, designava como o tema da "revolta dos objetos". Seja no poema que dá titulo a esta parte da obra (a figura feminina estilhaçada em mil pedaços, certamente fragmentos de uma única personagem), seja em outros como "Trapézio" (sapatos, luvas, chapéus, roupa mal escondem as impurezas internas) ou ainda, muitas páginas adiante, no poema "Noite", integrante de Speculum (1989), "as coisas/nao páram de roncar". Em "Trapézio" assiste-se ao lento "strip-tease" que evita o texto "longo como água" a que o mesmo Maiakovski referira-se em Como fazer versos, querendo falar do poeta estreante que não sabe conter a verbosidade. Aqui o caso é outro: perfeita adequação fundo/forma, o poema é cinematografia que desce verso a verso atéo final: "o sexo corre/por detrás/e fica a//dúvida"). O último verso, com sílaba única, é um achado, neste contexto, apontado para a fuga do objetivo do desnudamento.
Esta digressão nos conduz à prática perita do enjambement que Jorge Lucio de Campos demonstra. Em "Ricto", do mesmo ano de "Tauromaquia" (1993), destaca-se, para nosso propósito, o poema "Os lazeres do pintor", quase uma explicação do próprio ofício poético que aqui se celebra: "bizarro/transpõe quinquilharias/bugigangas, carantonhas/cintilâncias para a tela". Demontra-se a beleza solitária do fazer do pintor (poeta?) que, na sua contraface, "mantém fechada a vidraça". Nada mais da pintura-janela de Alberti, nada de ilusão: "...o orador/cederá o peitoril/à natureza tão presente/ali na/encarnação do boi" ("Comércio"). Por isso as palavras desta "via oratoris" se desintegram como as coisas, desmontam, partem-se em pedaços de um verso a outro, mesclam-se, anulam-se enfim. Não se trata de um projeto fácil de realizar. Jorge Lucio de Campos não só o fez mas, como quero demonstrar, elevou-o à propria produção como um todo.
Pois, novamente apelando ao leitor atento, desde a primeira parte, toda esta antologia é uma reescritura. Em Ad marginem (1991), está recomposta a produção anterior de pequenos fragmentos de prosa poética cuja melhor descrição tem de recorrer ao estilo do autor: pequenos estojos cujo conteúdo é altamente explosivo, o que nos lembra os minicontos desconcertantes de Kleist e Kafka. Tenho de anotar a coragem de Jorge Lucio de Campos ao retificar, nesta parte, alguns poemas que em Arcangelo, seu premiado livro de estréia, tinham o empecilho da forma em verso. Ao devolver às palavras um potencial de narrativa, o autor indiretamente aponta para uma questão de fundo da produção contemporânea que se dispõe à forma longa.
A surpresa, como se diz, fica para o fim. Nada menos que seis livros datam de 1988: Épaves, 6 estudos para Lovers eating skulls, Poemas que não são poemas, Parapoemas, Fauna, Bagatelas. Vários textos pertencem aos dois livros publicados (Fauna, por exemplo, ja aparecera em Speculum). Não se trata sempre dos mesmos ganhos obtidos nm partes anteriores, pois estamos aqui no subsolo da criação, na imagem invertida desta Comoedia, nos andaimes de atual produção. O autor aqui se expôs, deixou ao leitor a oportunidade de ver o que normalmente se esconde. A chave se encontra, acredito, na pequena peça "Gracioso", segundo dos Parapoemas: "olhos calidoscópios/terás que fundar o/poder do esquecimento". Jorge Lucio de Campos retalhou-se em várias direções, não se contentou com a imagem intacta, construiu urnas que se contém umas às outras. É talvez um grande momento: esta antologia não é coletânea. É um signo que se decifra enquanto se expõe. Não são muitos os que podem exibir esta coragem.