Jorge Lucio de Campos

 

 

René Magritte. Reprodução proibida, 1937.

 


 

ANTES E DEPOIS DA CIÊNCIA

 

a Brian Eno

 

1

 

Talvez esse

choro perfure

 

meu peito e

palmo a palmo

 

escave o tempo

e suma, enfim

 

em todo caso

 

 

2

 

Talvez por

isso o leve

 

a sério: por

fazer-me

 

desamar o

homem -

 

crê-lo sem

esperanças

 

 

3

 

Em todo caso

diante dele -

 

e sem mais

nem menos -

 

os lábios

ganham um

 

riso sem cura

 

 

4

 

Não sem antes

rastrear nos olhos -

 

num sentido

que beira

 

uma surda

manhã -

 

o mais terrível

céu azul

 

 

 

À MESA, A OLHAR

 

Pois é tão mais provável
que eu te cubra os ombros
e pisque os olhos - de
vez em quando

 

Se a boca de corta-papéis
e os dentes, arrancados
se acavalam cheios
de surpresa

 

 

 

QUEDA EM AMARELO

 

a Antonio d'Acchille

 

1

 

Dir-se-ia um riso

aberto para fotos

 

Belo ou feio -

não importa se

 

um besouro ali

se aninha e, de

 

repente, um bocejo

um colarinho, um

 

cometa em cada 

sonho adormecido

 

 

2

 

Melhor que isso

só a hora de

 

sentir-me mais

seguro; o sol -

 

ao rés do dia -

querendo ver

 

entre as colinas

o quanto a noite

 

se disfarça, o

quanto ela se

 

entrelaça

com você

 

 

 

MEUS PAIS

 

a David Hockney

 

1

 

Dou-me conta

que não é fácil

 

a vez primeira -

 

quando a mão

entalha um dorso

 

tão franzino

 

 

2

 

Folha a esmo -

tília ou forquilha -

 

o amor a Deus

se dá em goles

 

num voar de

lentas cotovias

 

 

 

CONSTRUÇÃO PARA DAMAS NOBRES

 

a Kurt Schwitters

 

1

 

É um lábio

o que o espelho

 

anuncia?

 

Uma fissura

que, aos poucos

 

se distende

num buraco

 

pueril?

 

 

2

 

Bizarro seu

intento -

 

aceso seu

conduto

 

de veias e

nervuras

 

 

3

 

Duas pregas

que se enroscam

 

um novo ânus

que alicia -

 

gulosa boca

entre as demais

 

 

 

RETRATO DE REGINA NUM QUIMONO PRETO

 

a Steve Hawley

 

1

 

Pouco a ver ou

a dizer daqueles

 

seios de Alechinsky -

 

as coisas do mundo -

a argila quente do dia

 

 

2

 

Pouco a ver ou

a dizer daquele

 

queixo de Rodchenko -

 

um eu-te-amo de

delírio reencontrado

 

(um pouco a língua e

a nuca por completo)

 

 

3

 

Ao redor daquelas

patas de Tanguy

 

cabeça, tronco

e membros

 

 

 

PINTURA PARA JOVENS

 

a Max Ernst

 

O que vejo no quadrado da janela é

vontade, muito louca, de sentir vontade;

um grão de areia em sua essência de colar na perna

e moldar o corpo, é claro, quando assim se quer;

cinérea placa que rutila e alucina toda vez

que o sol

 

Mas, no fundo, o que reflui é o que bem

conta e, vez por outra, rumo ao nácar

preservado sempre gira e ri da morte de quem

olha no quadrado da janela, com vontade, muito louca

de sentir que

 

cães e gatos, enredados como artrite,

agulhados, se despejam no vazio; e cada um -

ali em frente - a rigor, nem existe (e alucina) toda vez

que vem o sol.

 

 

 

MARRAKESH

 

a Frank Stella

 

1

 

É triste, lamacento

o ranço desse humor

 

Quando um fala e

o outro se revela

 

não pensa o

garcin que exala -

 

agradece, acanhado

o que o espera

 

 

2

 

Não é fácil, então

que o tempo ceda -

 

e, a cada espasmo

algo se rache -

 

assim velando

(anoitecente)

 

a mais acesa

das pupilas

 

 

 

FLORENCE NIGHTINGALE (Florença, 1820 - Londres, 1910)

 

No corredor principal, ela cochila; e a luz escalena que a inocula, se não toca o cão que a guarda, ao menos o abençoa.

 

 

 

PUGATCHEV (Zimoievskaia, 1742 - Moscou, 1775)

 

O que há de pior em Pugatchev é a indefinição física. O nariz parece um e o queixo se contrai como um ventre furibundo. As mãos puxam aos joelhos e os artelhos pouco distam entre si. Sua fronte é enrugada e olheiras impedem-lhe a visão.

quem veja no valente campônio umcorpo gloriosoou nele conceba umpuro espírito”. Em minha opinião modesta, ele mais lembra um ente demoníaco ou algo mais inútil: o ranger de uma calha num dia quente de verão.

 

 

 

SHOTOKU (Japão, 572-621)

 

É curioso que na construção do templo de Horiuji tantas pedras tenham sido utilizadas. Poucos sabem, no entanto, que o intento de Shotoku - na condição de homem forte da Imperatriz Suiko - foi resguardar a aceitação da na região. Acreditava que, desse modo, encarceraria os maus espíritos que a ameaçavam.

Habitantes silentes das paredes e nichos do templo, aquelas entidades aguardam, pacientemente, desde então. Quiçá na expectativa de que forças naturais (um terremoto, um raio, etc.) ou um mesmo descuido - ou a má - dos homens possam um dia libertá-los e reinarem num mundo dado à adoração.

 


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