Jorge Lucio de Campos



Wassily Kandinsky. Composição VII, 1913.

 


O JOGO DA ARTE? A VERTIGEM EM JORGE LUCIO DE CAMPOS

Floriano Martins

A poética de Jorge Lucio de Campos soma-se às reflexões sobre a obra plástica de inúmeros artistas, ensaios que vem publicando em livros e revistas, na condição de uma vertiginosa compreensão do que ele próprio chamou de A dor da linguagem, belo título de um livro de 1996. Neste livro, aliás, logo no prólogo, Marco Lucchesi o chama de "poeta peregrino", no que acerta por completo, tanto pelo sentido de rara beleza que ali alcançam as imagens como pelo incansável percurso desfiado por Lucio de Campos à procura de uma voz interior que o distinga da paisagem à volta, ao mesmo tempo em que lhe afirme, com base na própria individualidade, como parte essencial dessa mesma paisagem. Não à toa a idéia de incomunicabilidade que o título sugere é igualmente uma afirmação de seu revés, o dentro e o fora como vasos comunicantes, interrelacionados.

Em um livro seguinte, uma vez mais no título, a chave para o entendimento de uma poética: À maneira negra (1997), sugerindo uma nova faceta da dor da linguagem, a aflição do transitório, como acerta Carlos Lima no prólogo, sim, mas também o conflito da simetria, pois ali se percebe, mais do que em qualquer outro momento da poesia de Lucio de Campos, a tensão entre homem e natureza - uma indagação lancinante se encontra em poema dedicado a Escher: pode a linha do corpo / a cada hora do dia // por no rosto uma cor / não constante? E logo: pode a esfera / começar o transe // sem que nada / mude?

A propósito de Escher, cabe lembrar que também este livro confirma a plasticidade de uma poética, a afirmação de uma visão de mundo através do diálogo com inúmeros artistas, a rigor: com a obra desses artistas, com os silêncios, as iluminações, recortes, sombras, fluir e refluir de outras linguagens caídas em um mesmo abismo de identificações. Lucio de Campos não oculta a conversa que mantém com o mundo, a fonte de experiências dos poemas, ao contrário: em tal revelação uma forma de convivência, o que, inclusive, lhe dá a medida de um conhecimento, precário, dolorido, turbulento, sim, e por isto humano. E observo ainda que esses diálogos nos levam a compreender que nãomotivos para que escritores, músicos, pintores, quaisquer artistas, vivam em mundos isolados, como se não fosse a mesma a dor da linguagem.

Em um ensaio intitulado "O poema em prosa como forma em evolução", Robert Bly gera um delicioso comentário de Heriberto Yépez, que o traduziu para a revista mexicana Paréntesis, quando menciona "a diligente percepção intelectual e a intensa descrição amorosa que exige o perfeito poema em prosa". Bly concentra-se na eleição por um object poem, a exemplo do praticado por autores como Francis Ponge, Tomas Tranströmer, Murilo Mendes, José Antonio Ramos Sucre. Refere-se a uma "composição integral", cuja medida essencial é dada não por um padrão - o metro, a estrofe -, mas antes pelas "mudanças que a mente tem enquanto observa". Se me estendo aqui na referência, o faço pelo fato de que Lucio de Campos tem praticado o object poem com uma freqüência considerável, o que inclusive nos leva ao presente livro, na verdade uma recolha de poemas em prosa, em boa parte já inseridos em outros livros, que constituem uma afirmação por essa poética de exceção com a qual se identifica.

A idéia de um aprendizado ou convivência com o "jogo do mundo" a que se refere Badiou, logo na epígrafe de Abraçar ordenhar aleitar, me parece que nos leva a uma discussão já apontada por Bly, ao mencionar que a idéia de forma fixa está ligada ao homem e não à natureza. Recordemos o comentário acerca de À maneira negra, quando me referi ao conflito da simetria. Bly acentua: "a forma na natureza remonta à tensão entre a espontaneidade individual e a rigidez impessoal". Então relacionemos as tensões, de reflexão e criação, sem deixar de perceber as linhas de acesso à impessoalidade e o que Bly chama de "forma pessoal que deseja adquirir" o poeta.

Lucio de Campos nos mostra em Abraçar ordenhar aleitar uma confluência admirável que lhe define a poética. De exceção? Sim. A ruptura com um clima harmônico de dizer está presente, mas sem deixar de atentar para a elegância do discurso. Acentuar a condição de exceção, no caso brasileiro, exige uma leitura outra, já de muito necessária, de compreensão daquelas zonas de tensão apontadas por Bly. O presente livro de Lucio de Campos situa o desdobramento e a confirmação de uma poética. Não se priva a um diálogo com o mundo, antes o afirma à maneira da própria vertigem, longe da impessoalidade, mergulhado na matéria ressonante da existência humana.


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