Jorge Lucio de Campos
Paul Klee. In
copula, 1931.
Definida por Joyce como "a forma mediante a qual o artista apresenta sua imagem numa relação imediata consigo mesmo", a poesia lírica (ao lado da épico-narrativa e da dramática, uma das três categorias gerais da literatura poética), afora sua inconfundível genealogia musical, nunca abriu mão totalmente, apesar das muitas e inevitáveis metamorfoses, de atributos como a brevidade (forma), o subjetivismo (conteúdo) e a sensualidade (temática).
Numa época como a atual tão pouco afeita à extração das profundidades, tão facilmente entregue à velocidade das superfícies, o lirismo ocupa uma posição paradoxal. Ao mesmo tempo em que é, entre as várias vias estéticas, a mais prejudicada (que tempo se teria, hoje, em meio ao tiroteio tecnológico, para o mapeamento simbólico dos vagares do ser amado ou de si próprio?).
Como ele ocorreria no seio de uma sociedade tão avessa a esse tipo de deleite (que, apesar dos pesares, ainda pode proporcionar experiências mais 'físicas' do que muitas hipersimulações
tipo bala com papel)? O que teria hoje a dizer, pela boca do poeta, o eu-profundo
diante dos embaraços impostos pela midiocultura
do prêt-à-porter? Seria possível diagnosticar ainda alguma reação? Ou não, teria a poesia lírica se tornado tão cansativa e quase tão igual aos traços ideológicos do urbanóide
homogeneizado?
O lançamento de coletâneas como de Matéria e paisagem, de Júlio Castañon
Guimarães, Intervalos, de Ronald Polito,
e de Encontros necessários, de Marcello
Rollemberg, pode, sem dúvida, oferecer-nos subsídios para um diagnóstico mais adequado da situação, permitindo não só que avaliemos a quantas anda, em termos de qualidade, a nossa produção mais recente, como que também balizemos seus níveis de virulência e amadurecimento.
A coletânea de Castañon contém, além do inédito Matéria e Paisagem,
os já publicados Vertentes (1975), 17 peças (1983), Inscrições
(1992) e Dois poemas estrangeiros (1995). Nela o autor pontua, com
sensibilidade musical e arquitetônica, uma dicção plural em que o eu-profundo, vindo ao máximo de sua tona, se inscreve numa
espécie de narrativa perspéctica monocrômica. Quase
sempre comportando-se como uma pura pálpebra cerrada,
busca pontuar a geometria e o mito das coisas num exercício contínuo de
esbatimento que "de si extrai/de luz/seu alimento".
Por outro lado, o forte tônus
meditativo de Matéria e paisagem ancora-se numa espécie de rosto anônimo
(porque intencionalmente envolto nele mesmo) que insistentemene
reclama o direito à cena. Sua afirmação se dá, via de regra, mediante um jogo
onde rememoração e esquecimento se imbricam, como bem ilustra, entre outros, o
belo 'Fragmento olisiponense', "no horizonte/contra mares de esquecimento/recortam-se
fragmentos de ruínas/- ninguém a reler manuscritos/de
sonhos de ter sido".
Já Polito
opta pelos batimentos do dia-a-dia, pelo remoer-pulsar da vivência cotidiana,
pela sensação vazia do tempo e da memória, pela iminência e impossibilidade da
ação e do pensar. Traços que se encontram melhor
reunidos no segmento 'Decomposições' (o mais rico do livro) que, juntamente com
'Hora Zero', 'Paisagens', 'Retratos', "Natureza-Morta', 'Degradações' e
'Vão' compõem seu Intervalos. Trata-se de um lirismo indiscutivelmente
crepuscular, que, aos poucos, se encorpa numa decantação contínua de
impossibilidades.
Para Polito, o tempo passa o tempo todo ("o tempo passando/parado/o
corpo completo/acabado"), antes se dissipando que acumulando sentidos. Eivado de implacáveis semas como 'poeira', 'ponteiros', 'ciclos', 'segundos' e 'agoras', Intervalos, em seus melhores momentos, mosqueia-se com um estranho e atraente páthos
onde "não há pegadas/vestígios/a superfície limpa/já não grita/nem por dentro/em sua câmara/sem eco/não desperta/indiferença".
Quanto aos poemas em prosa de Encontros necessários, de Rollemberg,
pode-se dizer, na esteira do prefaciador Claudio
Willer, que seu impressionismo fragmentário, de fato, favorece que penetremos "(um) mundo de sonho e inconsciente, onde tudo pode transformar-se e vir a ser outra coisa, ou ao menos, a mudar de cor". A inconsistência do eu-profundo
é construída com metáforas lentas que revelam uma elegante esquivez (caso de "a água morna, sem viço, aumenta o pântano da boca", p. 39, ou de "Murmuro palavras que só a ti pertencem, som de dedos úmidos sobre o vidro, sufocada interjeição noturna", p. 85).
Apesar de ocasionalmente atravessado (a exemplo de Matéria e paisagem e Intervalos) por uma certa precariedade qualitativa, Encontros necessários consegue fornecer-nos, em seus não poucos momentos de captação precisa de um lirismo realmente dado, uma medida sincera do que, de fato, hoje (mais do que nunca) tensiona as
expansões do eu-profundo.
O Globo, 4/7/98.
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