Jorge Lucio de Campos



Paul Klee. Senecio, 1922.

 


Compõe o Livro do desassossego um total de noventa e quatro fragmentos de prosa poética (contidos em cinco grandes envelopes integrantes do espólio de Fernando Pessoa - vinte e sete mil, quinhentos e trinta e quatro papéis encontrados numa arca). Nem sempre datados, alguns apenas rascunhados, eles se acumularam entre 1913 (um pouco antes, portanto, da gestação de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos - os heterônimos mais recorrentes de Pessoa - e 1935, ano de sua morte. Trechos de tais dispersos chegaram a ser publicados em alguns importantes periódicos da época, quando o poeta ainda vivia.

Intercalando registros do páthos cotidiano com grafismos psicológicos e reflexões de fundo estético-filosófico, o poeta lusitano antecipa, num emblemático tom confessional, a recorrência amarga e tediosa de sua última fase. O assinante da obra, "um modesto ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa", de nome Bernardo Soares (Vicente Guedes), atua, simultaneamente, como uma persona ficcional e um semi-heterônimo.

Ninguém ignora o peso exercido pela alteridade na obra de Pessoa e o quanto tal fato o credenciou como um típico representante do começo do século XX, com malabarismos estilísticos na desesperada busca de uma dicção final, uma voz, ao mesmo tempo, misteriosa e especular. A famosa afirmação "Viver não é necessário; necessário, sim, é criar" foi concebido por alguém tomado por um afã de libertação. Neste sentido, os desassossegos expostos pelo poeta, muito mais do que meras agruras pessoais - no caso, as do indivíduo Fernando Antonio Nogueira Pessoa, nascido em 1888 e morto quarenta e sete anos depois - se inserem num panorama infinitamente mais vasto. Trata-se dos desassossegos (ou mesmo do exorcismo) de toda uma geração em franco processo de amadurecimento.

É com este espírito que Bernardo Soares Vicente Guedes, talvez o mais legítimo porta-voz do Pessoa fingidor, sopra-nos, com uma sinceridade desconcertante, do interior da floresta de seu alheamento: "Sei que despertei e ainda durmo. Minha atenção bóia entre dois mundos, e eu não sei onde estou nem o que sonho. Sou todo confusão quieta".


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