Jorge Lucio de Campos

   

René Magritte. A lenda dos séculos, 1948.

 


 

RETRATO DE DORA MAAR

 

a Pablo Picasso

 

Nunca pensei em ti mais do que permite

um abraço triste em fond rouge

          que o vento rasga quando passa

 

indefinível, embora se o receba com seus

textos de ar e ambivalência e se vá

          rumo ao que não creio que sequer

 

exista um pouco, quando o espelho não decifra

muito aquém do que, ao contrário, claro e

          denso, te aprisiona em mim

 

 

 

CONSTRUÇÃO DE ESPAÇO-FORÇA

 

a Ljubov Popova

 

Na imagem que se

foi, como eu avivo

 

o espaço enfeitiçado

o núcleo asmático

 

dos termos que não

falam, nada dizem

 

mas germinam -

mesmo se não

 

quero, como

lavro meu desejo

 

na pelagem fácil

da metáfora?

 

 

 

SANATÓRIO

 

a Edward Kienholz

 

1

 

Ao falar, digo

pouco: nunca

 

disse que diria

 

O que revolve

em mim nem

 

nome tem -

 

não tem preço

o que se abre

 

quando embaço

um vidro inteiro

 

 

2

 

Só fiordes

em mim, um

 

temor que

me atropela

 

se me dispo

e finjo estar

 

num sanatório

 

 

3

 

Talvez seja o

que eu mereço:

 

o nome que

me deram

 

e que não

tenho -

 

a sentença

colada

 

nos lábios

 

os papéis

amassados

 

do bolso

 

 

4

 

O tempo que

não escoa e

 

coagula

 

Os olhos que

necrosam

 

insones

 

A mudez de

Deus que

 

não importa

 

 

5

 

Nela estalam

coisas que

 

desouço -

 

o futuro que

as janelas

 

entreabrem -

 

outras marcas

de anzol

 

e pecado

 

 

6

 

Pois bem:

num salto

 

é que me

ponho, já

 

sem pés e

estilo: a

 

barba por

fazer, o

 

cabelo em

desalinho

 

face às águas

que, imagino

 

tomarão o

quarto a

 

qualquer

hora

 

 

7

 

Inferência pura

que me torna

 

uma etapa de

mim mesmo

 

inatingida -

inacabado

 

não sou do

meu tempo

 

não sou

minha poesia

 

 

 

VARIAÇÃO DE CUBOS INCOMPLETOS

 

a Sol LeWitt

 

Olhos que não

deixo de vestir

 

o quanto posso

- o inverso de

 

um buquê de

crisântemos

 

em mim

encaixado

 

como a boa

língua que

 

tornei leitura

(em parte

 

alguma)

depurada

 

 

 

A INCERTEZA DO POETA

 

a Giorgio De Chirico

 

1

 

Afinal, o que

me espreita

 

aqui tão preso

à gravidade

 

de meus ossos -

à forquilha de

 

minha aura

turbulenta?

 

 

2

 

Sensação que

arde e purifica

 

: a de que algo

te observa lá

 

de fora, com

dois olhos

 

tão famintos

de habitar -

 

 

3

 

e que rumina

a tua pele

 

numa regra

só imposta

 

por quem

goza, apenas

 

goza no

olhar

 

 

4

 

O que era

fora fica

 

dentro e o

que era

 

dentro a

si retorna

 

e vem

de vez

 

de novo

fora

 

 

 

INSULA DULCAMARA

 

a Paul Klee

 

Uma junção sugere redes, desdobradas por cima, foscas por baixo, em que se destacam faixas e cânulas.

No entanto, nela cresce, no sépia dominante, uma corcova cujos tons se isolam e, aberrantes, dão no que seja um prazer carnal.

Não se sabe por que, mas carece de anagramas que lhe trariam um júbilo de cinco ou seis ou, mesmo, três quartos de polegada.

 

 

BIBLIOTECA VERMELHA No. 1

 

a Laurie Simmons

         

Envernizaram-no, o que não impede que ranhuras se avivem em seus arabescos, onde tudo é um só mosaico em voz baixa.

          Os passantes o imaginam sem as lentes e arriscam adivinhar o que veriam aqueles olhos que, por um minuto, parecem pensar, prenhes de segredos.

          Como foi dito, há muito a reler no busto que não vê, mas, se o fizesse, não diria, indefectível à nossa inocência curiosa.

 

 

 

BIBLIOTECA VERMELHA No. 2

 

a Laurie Simmons

 

          Nem cabe mudá-lo de lugar. Na cela monacal em que, à noite, a biblioteca se transforma, ele não reclama, embora sua coluna até se canse, naquela pose ascética, de quem aguarda que abram a porta e o surpreendam, alojado e sonolento, à esquerda dos que entram.

É tão vasta a mudez do recinto que chegam a esquecê-lo. Suas listras se arrepiam, de modo a parecerem o que não são. Se isso, porém, não preocupa, é melhor ter prudência. Talvez colocá-lo à frente. Quem sabe afagá-lo um pouco. Insuflá-lo com um spot atravessado.

 

 

 

HORÓSCOPO

 

a Marcel Jean

 

Somos forças que promovem a vida. Ninguém se importa, é claro, com isso. O mundo não se revela, mesmo assim.

Sem rumo definido, cada segundo é um divertimento, um plano-seqüência, uma sereia, um vulcão, uma máscara boa.

A chuva dita rudezas a quem passa. As superfícies tendem a trincar. Uma mosca se esconde entre as ruínas.

 


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