Jorge Lucio de Campos



Wassily Kandinsky. Improvisação III, 1914.


POESIA SOBRE O VAZIO 

À maneira negra, quinta coletânea do também ensaísta Jorge Lucio de Campos, estimula, e é este o seu principal mérito, uma reflexão a respeito do estado da poesia brasileira contemporânea, que, a meu ver, desinformada e conformista, limita-se a se 'debater', sem resultados expressivos, com (mas, contra, nunca) as tradições do modernismo, concretismo e tropicalismo (quando não, o que é mais "pobre", com traços do século 19), não conseguindo estabelecer novos paradigmas, apesar das exceções. Exceções, quase todas situadas na "área sensível", para me valer da expressão do maestro Júlio Medaglia, tais como, entre jovens, Claudia Roquette-Pinto ou Antonio Moura. No que se poderia chamar (Medaglia ainda) de "área inteligente", o campo em que se pensam e se articulam novos conceitos e novas leituras da cena brasileira, quase nada há.

À maneira negra, inscrevendo-se mais acentuadamente na "área inteligente", tenta romper com tais"tradições", buscando outros paradigmas. Jorge Lucio de Campos não "retoma" Bandeira, Drummond ou Cabral - ao contrário de muitos, que o fazem de forma tépida. O tratamento fragmentário da linguagem é diverso do melhor e do pior concretismo. Em À maneira negra não há marcas de tropicalismo. O livro opera com a idéia do vazio, na qual se encontra a poesia brasileira: "...A um passo assim/contar silêncios/que a tudo cifram..."

Em toda a coletânea se percebe o esforço em trabalhar "o sentimento das palavras como estando distantes, como tendo que ser guiadas de volta" - para aqui me valer de Stanley Cavell, lendo Wittgenstein: "Um tamis -/tenho dito -/no poema; pouco /importa o lustre/que o nutre,/assim sem trincos/contra o qual/se teima um/estrondo"("Wittgenstein em Cassino").

Neste texto, fica clara a "intenção" de rompimento com as tradições existentes: pouco importa o lustre que o nutre, com ênfase no "pouco importa". O tamis, filtro, é, pelo poeta, removido por "um estrondo". "Estrondo" que, na peça "Victory Boogie-Woogie", é visto com desconfiança: "...A noite/de trapos e ciclones/-inábil para soprar o dia..."

As peças de Lucio de Campos se assemelham a anotações. Leia-se: "Se possível for/(...)/ímpio torvo sol/-maior poente/que em si mesmo/(meio-espesso)/silencia". Os silêncios que cifram, que tudo codificam no já existente e bloqueiam novas visões. Um dos bons momentos "sensíveis" é parte quarta de "Marrakesh": "...Nesse caso, um sussurro/de palavras quase ditas/quase finas de tão claras". O "dito" se articulando, cinicamente, com o tênue, com o tamis - seda, filtro, preciosismo - em que se encontra a poesia atual. Sim, pois há o preciosismo/maneirismo/nostalgia do modernismo, concretismo, tropicalismo.

Lucio de Campos não se empenha no acabamento dos poemas, embora tenha consistência. Volta-se para o traçado de um possível novo olhar, embora haja momentos fracos como: "Será mesmo urgente alcoolizar o verbo?/sair da boca de cornija -/(...)/mascar Platão numa/meia gargalhada? - puro kitsch, no qual o que se quer dizer se dilui em imagens esvaziadas. Há, por fim, poemas em prosa que, fragmentários como os outros, intentam uma nova unidade verbal para a poesia, além do verso e do não-verso. Entre eles, destacaria "Pugatchev", de ironia não distante do mundo: "O que há de pior em Pugatchev é sua indefinição física. O nariz lembra um pé..." À maneira negra revela voz inquieta, que retoma, aí sim, a idéia de andar, caminhar...
 
Folha de São Paulo
, 29/3/98.
 


APRESENTAÇÃO DE LIÇÃO DE ALVURA
 

Lição de Alvura reafirma Jorge Lucio de Campos como um poeta preocupado com a investigação de novas possibilidades de ritmo e de imagem para a poesia contemporânea brasileira que, com raras exceções, se limita a diluir traços do modernismo ou do concretismo. Jorge é um poeta de reflexão - que se refina em ritmos sincopados, a fazer ressoar, com nitidez, as sílabas e, nelas, as imagens: "Se o azul da noite/inebriante tamm/conta, então digamos/:isso/inquieta". E, nas imagens, a sintaxe, "ruminando" - contra a maré - "algo sem (aparente) nexo".

Há na poesia de Jorge um diálogo permamente com as artes plásticas e, a partir deste diálogo, uma conquista de imagens claras, brutais como: "unhas sujas/já não cabem/nesses dedos/mortos?" ('Velhice') ou no belo 'Moinho branco': "Dedos no/espelho/suplicam/um fio - /a ,etade/do que/dizem ser/e olham/sempre/físicos". Há também um tom pessoal que, entretanto, não cai no confessional - ":fechado/numa pele/enxadre-/zada". Jorge Lucio de Campos está vivo. Sua poesia se propõe a buscar, sensível à luz do sol, "um possível/estilo intocado", o que não é pouco, ao contrário, numa década onde prevaleceu o conformismo e a falta de imaginação.  

Régis Bonvicino


[email protected]

Retornar