PREFÁCIO À VERTIGEM DA MANEIRA
"A divina providência ordenou que o governo universal que, no início do mundo estava no oriente, pouco a pouco, com o passar do tempo, se deslocasse rumo ao ocidente, para advertir-nos que o fim do mundo está próximo porque o curso dos acontecimentos já atingiu o limite do universo" - Umberto Eco
Não nos faltam, na cultura ocidental, arautos da catástrofe: suas formas, contudo, tem variado ad infinitum. Desde Os trabalhos e os dias de Hesíodo e sua representação da decadência do mundo (da Idade do Ouro à Idade do Ferro, que era a sua), e os vaticínios de Cassandra na Ilíada de Homero, até as duas grandes utopias da literatura do século XIX, Admirável mundo novo de Huxley e 1984 de Orwell. A própria cultura ocidental se formou com a idéia trazida do Oriente, mas que - mais aqui do que lá - lançou raízes quase indestrutíveis de estar situada entre a queda do homem e um juízo final que viria, quer para redimi-lo, quer para destruí-lo e que, para um historiador como Marc Bloch, permeava toda a nossa consciência histórica. O que quer dizer: uma teleologia (uma ideologia) que se instituía quase como base de uma 'ciência'. Mas foi propriamente para fugir a tais catástrofes que o Ocidente desenvolveu a história, como a criar para si instrumentos conceituais que permitissem evitá-las. A ciência da história, aliás todo o projeto da ciência moderna, nada mais foi do que uma 'promessa de felicidade' oferecida à sociedade como meio de controlar e domar o futuro da humanidade.
Talvez a noção mais perversa que as teses sobre a pós-modernidade tenham adiantado seja exatamente esta: a do fim da história. Não o fim da história na sua empiria, mas da história como forma de representação, como maneira de dar conta de um real que, para a maioria da humanidade, se apresenta cada vez mais insuportável, tanto em seu cotidiano individual quanto em seu cotidiano coletivo. Um fim da história que se anuncia como fim da possibilidade de pensá-la e, portanto, o fim da possibilidade de dominá-la: se a história é uma impossibilidade, aquela promessa de felicidade se torna também uma inviabilidade; pior ainda, algo sem qualquer sentido. A noção de totalidade que a sustentava, epistemologicamente, uma vez derrubada, abandona os indivíduos a si mesmos, em meio à insidiosa 'fragmentação' da pós-modernidade, frente à qual somos todos indefesos, estamos todos desarmados.
Foi sobre esta ideologia da catástrofe - provavelmente a pior delas, porque muda e indolor - que se ergueram muitos dos fundamentos para a nova arte e a nova cultura emergidas nos anos 80. De uma nova cultura de que os yuppies foram os porta-vozes (e os mecenas); de uma nova arte de que a transvanguarda em todas as suas formas (a própria trasavanguardia italiana, a bad painting anglo-saxã, os Neue Wilde alemães, etc.) foi o ícone. Uma arte e uma cultura de paródia, não da tragédia, que aceita não sem cinismo sua nova e recém-descoberta 'pós-moderna': nada por que lutar, porque nada mais há a transformar. O que fazer? Aceitar e aproveitar o que puder ser aproveitado. Certamente uma noção de fim da história bem diferente da que Hegel havia teorizado e algo totalmente antagônico ao fim da pré-história proposto por Marx. Silencioso e inglório como no poema de Eliot: This is the way the world ends, not with a bang, but a whimper. O big bang que deu origem ao universo tem seu correspondente e seu avesso no anticlímax de uma sociedade que, como que indiferente ao fim, abre mão de sua capacidade de dominar o conhecimento de si mesma e se contenta em aceitar as condições que se lhe apresentam. De fora para dentro, de quem assim lhe diz serem as coisas.
O texto de Jorge Lucio de Campos se debruça sobre este fenômeno, traça-lhe as origens, descreve seu percurso e genealogia, busca seus antecedentes e suas justificativas: nos textos que o teorizaram e nas práticas que o objetivaram. Mostra como, após todas as rupturas e os radicalismos, as cisões e os embates, as discussões e o acirramento de espíritos que caracterizaram a arte moderna desde o seu aparecimento em meados do século XIX até as vanguardas dos anos 70, os anos 80 surpreenderam a todos com uma 'apatia' política que só tem paralelo na intensidade com que ela defendia o resgate da 'independência' impotente do artista frente aos compromissos históricos que até haviam definido a modernidade na arte. De um lado, a arte abria mão do papel transformador que pretendera ter frente às demais instâncias sociais e, de outro, redimia a dissociação que se fizera entre o artista e seu público na tarefa de revolucionar o status quo. As vanguardas mostravam à sociedade a imagem de seu próprio futuro, por vezes a despeito do desejo da sociedade mesma. A transvanguarda mostra à sociedade, inversamente, a imagem parodística de seus próprios desejos, como os óculos que Copélius ofereceu a Hoffmann, para que ele se enganasse ao encontrar em uma boneca as mesmas paixões de um ser humano.
Esta a aparência da coisa, é claro... Não
que a arte dos anos 80 se tenha emaranhado em uma ideologia que a invalidasse
para todo o sempre. Como já foi dito antes, freqüentemente homens
e obras valem bem mais do que sua epistemologia. Os fundamentos postos para
a arte dos anos 80 podem ter sido, por vezes ingênuos, equivocados,
cínicos (algumas vezes decidida e positivamente provocadores). As práticas
dos artistas, não obstante, são outra coisa, e nos legaram
um acervo que, no seu conjunto, é tão rico quanto o das décadas
precedentes: por outro lado, as artes plásticas, mais do que qualquer
outra forma de manifestação artística, foram talvez
as que mais vigor e permanência demonstraram em uma década em
que tudo era transitório, descartável e sem identidade. Se
a arte não se oferece mais como veículo de legitimação
dos processos sociais (neste ponto, ela foi suplantada pela ciência),
em compensação está bem distante da morte, há
muito anunciada, pelo puro esgotamento de suas possibilidades. Nem tudo está
dito, muito há por fazer. E os artistas continuarão a fazê-lo
por muito tempo ainda.
Reynaldo Roels