Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça, parecidos como duas gotas d'água, já haviam exercido antes, em parceria, o espinhoso ofício da tradução (cf. seus Sylvia Plath - Poemas e Arthur Rimbaud - Iluminuras, publicados, respectivamente, em 1991 e 1994). Agora, ao lançarem, 'conjuntamente', Visibilia e Eu caminhava assim tão distraído, de certa forma, repetem a dose, só que agora cada um por si (Rodrigo já estreara, três anos atrás, com Solarium) e em relação à sua própria poesia.
Julio Castañon Guimarães, no texto de apresentação de Visibilia, fala de um "adensamento do trato com a matéria" que, longe de garantir a mera vocação táctil de seus poemas, denuncia, com o ruminar da leitura, uma intencional indefinição entre o visual e o verbal. A meu ver, não resta dúvida de que eles extraem, de fato, sua energia da fratura entre o visível e o dizível, do hiato existente entre o instantâneo da visão e o sucessivo da palavra.
A maior parte dos quarenta títulos que compõem Visibilia tenta, seguindo à risca a bela epígrafe de Klee, não apenas (re)inventar a natureza, mas também (e sobretudo) tornar visível o seu sentido - ou melhor, reconstruí-lo tão-somente a partir de resíduos de visibilidade ou daquilo que, se mostrando puramente ao olho, melhor se presta (e sem sustos) a despertar o surto da linguagem.
Na maioria das vezes em que Rodrigo captura o que o mundo oferece como "coisas vistas uma só vez/nítidas (...) possibilidades de luz", o ato de ver - tão ingrato de ser recuperado pelo ato de escrever - serve como alavanca para uma empresa de resplandecimentos das nuances 'naturais' das coisas. À guisa de René Char e Francis Jammes, sua varredura visual privilegia o "amor à terra" com imagens recorrentes de paisagens compostas por ondas, chuvas, brisas, montanhas, dunas e faróis (cf. "Oração à brisa", "Pedra, labor de espumas", "O que passou" e "MU" - quatro ótimos momentos do livro). Ao fim, Visibilia apenas constata que todo poema "é uma ilha ainda por ser escrita" e que toda tentativa do poeta é "como um minuto de silêncio" que o poema reverbera na "pura distância" que o separa do que o atiça.
Já a dicção de Eu caminhava assim tão distraído, embora igualmente rica em fanopéias, antes se destaca por sua vibratilidade. Os versos de Maurício (mais homogêneos do que os de Rodrigo, por sua vez, mais dados aos paroxismos) insinuam amiúde um invejável grau de leveza ("A melhor vista/é esta/mas quando a noite/cai de súbito/- assim eu a prefiro/sem pontos de referência/sem hesitação") que, além de auxiliá-lo em seu detono imagético, transforma-se num importantíssimo trunfo (por sinal, muito bem utilizado): o tônus do verso é aqui estruturalmente sustentado por uma fluidez quase nítida e por uma concisão sempre sensível que ofusca e conduz a vários pontos cardeais ("junto à porta dos fundos/do lado do focinho do cachorro").
Embora seus melhores títulos se concentrem no início (caso do poema título, de "Deixe tudo como está" e dos acima referidos "A melhor vista" e "Londrix"), percebe-se logo a existência de uma regularidade qualitativa (superior, inclusive, à de Visibilia) que Maurício consegue sustentar ao longo de toda a obra, distância mínima esta, entre seus erros e acertos, que torna a leitura de Eu caminhava assim tão distraído um exercício particularmente sereno e contido.
Trata-se, em síntese, de duas obras que compensam, por seus muitos momentos 'altos', quaisquer inevitáveis aferições de precariedade. Ou de duas gotas d'água, sem dúvida, muito parecidas com pérolas que - ainda por demais barrocas - possuem um clamor bruto, exercem um inegável fascínio...
Folha de São Paulo, 16/11/97.