Jorge Lucio de Campos



Paul Klee. Auto-retrato, 1922.


Haveria ainda tempo para a poesia? Considerando-se apenas o imediatismo dos famigerados 'consumidores de cultura', diria que não. Tal tipo de atividade (a leitura fruitiva do poético) parece ter soçobrado diante de tantos apelos osmóticos, hoje em dia tão atraentes - em sua maciça recorrência cotidiana - para a turba incauta/inculta (pouco importando por ora definir seus meios, fins e áreas de atuação), uma vez que a gula da megacirculação mercadológica, aparentemente, também dela já se apropriou. O socius, sob essa ótica, parece fadado a funcionar como uma máquina viciosa, sem tempo para 'luxos' como o ócio, a espontaneidade ou a degustação. Tudo tenderia, segundo a mesma ótica, a resumir-se à efemeridade do instante aparente, às ações de curto alcance, à ciranda do manipulável e do descartável…

Em tempos assim bicudos, onde não só a poesia, mas qualquer outra atividade esteticamente espontânea, antes sobrevive que vive - desajeitada e obsoleta em meio à ditadura das conveniências - sempre é reconfortante saber que, apesar dos pesares, investimentos continuam a serem feitos no sentido da consecução da belle oeuvre. Qualquer ato (ou pretensão de ato) que, por mais improvável que seja, possa chamar a atenção - e aqui me refiro não só aos que efetivamente se enriquecem, lendo ou escrevendo, com o circuito poético - para a importância da interferência (não gratuita, é claro) humana na realidade circundante (e que, simultaneamente, o preenche e desafia) merece ser (e muito) saudado.

É justamente o que faz a Nova Fronteira com Ruy Espinheira Filho, ao celebrá-lo como "um dos mais puros representantes da tradição lírica na poesia brasileira atual". De fato, o grau de maturidade poética demonstrada pelo autor ao longo dos quarenta e nove títulos que compõem Memória da chuva, sua mais recente coletânea, de modo algum conspira contra tal avaliação. Trata-se de um trabalho competente que se sobressai pela perícia e sensibilidade. Isso pode ser constatado já a partir do próprio título - uma imagem que explora muito bem a tensão entre o perene e o passageiro - por sinal, adequada ao espírito intimista que a obra se propõe ter, como lembra Alexei Bueno, um de seus avalistas (o outro é Paulo Henriques Britto).

Contudo é justamente nessa enfática opção pela verve lírica que reside, a meu ver, o que há de mais frágil no livro. Quase sempre às voltas com o mesmo leque temático (enxuto e exaustivamente explorado), os poemas de Memória da chuva constroem uma pequena história privada (ancorada no binômio ('afastamento/expectativa') que privilegia, sempre que possível, sensações como a de ausência ('Exumação'), tempo ("Soneto da justificação"), sonho ("Luar"), amizade ("Um sonho"), morte, além de sentimentos como o amor e a melancolia ("Enquanto", "Como um navio perdido"). E ficam nisso.

Se por um lado, perturbou-me a impressão de um apego excessivo ao trato formal - o que teria impedido uma fluência mais desejável da própria expressão (embora poemas como "Soneto de quintal" e "Blind Borges" indiquem a habilidade de Espinheira em evitar os chamados prejuízos 'fáceis') e uma dialética demasiado tímida com o concreto (que, muitas vezes, o leva a insistir nas reduções de cunho pessoal, evitando, curiosamente, a via mais fascinante das expansões objetivadoras), pelo outro, é preciso louvar a delicadeza com que ele buscou 'resolver' o magma poético. Isso não chega, é claro, a ser surpreendente em se tratando de um poeta já calejado, cuja competência foi criticamente aferida em trabalhos anteriores.

Espinheira se filia, sem dúvida, à linhagem dos que buscam o transcendente "no mais ínfimo acontecimento" e bem consegue 'dominar' seu texto (talvez seja essa a grande virtude dos bons escritores). Porém, num momento em que a poesia necessita reavaliar seu espaço, tem-se a impressão, um pouco inquietante, de que um poeta de sua competência poderia ir mais além e, expondo-se menos aos chavões da self adventure, abrir-se a novas potencializações.

Em síntese: quando a arte, de um modo geral, luta para não ser engolida por uma sociedade caracterizada pelo narcotização crescente dos meios de expressão, por 'valores' tecnicistas e pragmáticos - diante dos quais a poesia parece seriamente ameaçada - vozes como a sua precisariam ambicionar mais. E nutrindo, quem sabe, uma concepção mais visceral do poético, mostrar que - antes de servir como um veículo privilegiado da química interior - ela deverá, sobretudo, se engajar na instauração, contínua e incansável, de uma outra realidade. Aguardemos o próximo encontro…  

Jornal do Commercio, 16/2/97


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