Jorge Lucio de Campos

 

 

René Magritte. Reprodução proibida, 1937.

 


 

SE NÃO, NÃO

 

a Ron Kitaj

 

Vejo o verso do

que se mostra -

 

tom que confina

e sussurra -

 

como quem

celebra um mito

 

ergo um mandato

em ti amoldado

 

mas o gesto não

esgota o corpo

 

: o que tenho

é cena solene -

 

surpresa refeita

enquanto gozo

 

dentro de meu

próprio centro

 

 

 

MINOTAURO

 

Dois círculos cospem

esboçam tentáculos -

talhos no equilíbrio

delta de teus

pratos fundos

 

Embriões reduros -

pastoris acrílicos -

se alongam como

os pelos-cascos

desse púbis

 

mudo

 

 

 

O BOM SAMARITANO

 

Da vida espero pouco

: atear fogo às vestes

 

Labareda infante -

gesto octogenário

 

 

 

O PRAZER DAS CURVAS

 

Tudo ao teu redor

: um par de meias

 

flamejantes -

 

cajado em punho

roendo ossos

 

 

 

GRAFITO

 

Chover azul nuance -

os que dela correm

 

Chuva sem retorno

barroca, urbana tinta

 

Talvez miragem

- ócio que retine

 

a orelha fria

 

 

 

O OLHO SOBE COMO UM IMENSO

BALÃO RUMO AO INFINITO

 

a Odilon Redon

 

Pergaminho triste

sobre o mundo

 

Sente medo

se pendura

 

Toalha negra

que a tudo

 

espia

 

 

 

TRÓPICOS

 

Sinto nojo

dessas noites

quentes -

 

coalhadas de

calmarias -

 

em que furos

na parede

 

são túneis

do tempo

 

 

 

A MATEMÁTICA DOS MELÕES

 

a Markus Lüperz

 

dias em que um astrônomo nada pode fazer: a luneta ficará na estante. Em outros, pregar o olho é tarefa árdua. Cultivar a astronomia implica um velho receio: o de que a noite, ofendida com a indiscrição, queira castigá-lo.

Convicto de que o firmamento, de fato, possa e venha puni-lo, nosso homem não glosará a poesia celeste. As horas se escoarão, inutilmente. Ele, sem alternativa, se porá à espera.

muito a ciência não evolui. Para o alívio geral do universo.

 

 

 

DISFARCE CHINÊS

 

Na cidade de Kan-Sou, província de Yun-Kang, as gangues locais raptaram o marido da Sra. K’i e, graças a uma antiga desavença, o devolveram degolado à família.

Durante dias, a viúva procurou a parte que faltava. Penalizado, um exímio nadador da região explorou as águas barrentas do rio Tchong, afluente do Louan-Yan, responsável pela irrigação de 3/4 dos arrozais de Kan-Sou.

Certa vez, recolheu num saco vinte e oito cabeças. Em tempo: ali não estava a do infeliz Sr. K’i.

 

 

 

DISFARCE CHINÊS (Segunda versão)

 

A revolta acompanhou o vento que veio sem pressa e, sem pressa, espalhou-se entre os montes humanos.

Por todos os lados, vestígios marcados de uma juventude esquecida, de um doçura retida no peito.

Não houve submissão ou dissidência: os montes humanos formaram montanhas e os vestígios marcados ficaram no fundo.

Virarão cordilheiras e assim será - eternamente - essas coisas impossíveis de definir.

 


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