Jorge Lucio de Campos



Paul Klee. Medição individualizada dos níveis, 1930.


Após sete anos de hibernação poética, Suzana Vargas ora nos brinda com Caderno de outono e outros poemas, sua quinta coletânea (antes publicara Por um pouco mais, em 1979, Sem receio, em 1983, Sempre-noiva, em 1984, e Sombras chinesas em 1990). Trata-se, sem dúvida, de um texto que prima pela sensibilidade e ousadia sobretudo por eleger (e conseguir dar conta), como matéria-prima, uma temática tão traiçoeira (porque desgastada) como a da consistência do viver. Sob esta ótica, não sem razão, Heloísa Buarque de Holanda nos chama (na contracapa) a atenção para o fato dela "pertencer a uma geração que trazia como bandeira a fragilização programática das fronteiras entre poesia e vida", assim como para "seu seguro controle de linguagem e universo feminino".

Excetuando talvez essa última (mais do que feminino, o universo poético de Suzana se revela universal no sentido mais amplo de uma sensibilidade vivamente aguçada pela presença do mundo), todas as demais afirmações podem ser - já a partir da leitura de Árias, o primeiro dos quatro segmentos que compõem o livro (os demais são Subsolos, Transparências e Caderno de viagens) - prontamente confirmadas.

Afeita a imagens instigantes (como em "Musical", "os barcos mais adiante/encalharão nuns recifes//e como sonhos antigos/apodrecerão nas águas" ou em A casa, "digo adeus aos fantasmas/que te cercam/também aos teus arbustos"), o fôlego de Suzana se revigora sempre que se intimiza e/ou trata com o banal-cotidiano das situações (cf. "Momento", "Impressões da sangria"). Outra de suas características marcantes é o afloramento: mesmo quando parecem querer adormecer, seus poemas criam a expectativa de que neles há algo sempre algo em vias de irromper, sendo muito forte também em seu imaginário a certeza do tempo (cf. "Ouro sob a água", "Crônica íntima", "Como sempre").

Contudo, o que dá mais peso à sua dicção - e definitivamente a consolida como uma das 'vozes' de nossa atualidade literária - é o modo peculiar pelo qual ela tenta marcar o lugar do poesia em sua visceralidade para o modo humano de ser. Suas descrições, anamneses e prospecções demonstram que a realidade, de fato, só não se mostra metafísica se assim insistirmos. É dessa intencionalidade básica que poemas como "Secreta" (um dos mais belos da coletânea) extrai sua energia ao reafirmar a impossibilidade da relação entre palavra e coisa em torno da compensação poética ("A paisagem antecede essas palavras,/o verbo diante dela se evapora/e o mais é esse instante de silêncio"), e ainda "Ancoradouro" ("O que se diz diante do corpo/é nada./No final só contornos permanecem").

Ao nos abrirmos para Caderno de outono, temos a gratificante impressão de que ficamos um pouco mais perto das coisas, mesmo quando, conscientes dessa impossibilidade, lamentamos a sua ausência. Situada entre o vôo de Ícaro e as correntes de Prometeu, e sempre nos chamando a atenção para a aspereza do mundo quando de nossa apatia (ou displicência) em querer humanizá-lo, trata-se de uma poesia que, em seus melhores momentos, cativa sem nunca apelar, apela sem nunca dizer, diz sem nunca falar... Uma que cumpre, sem jamais quebrar o ritual, seu mais autêntico desígnio.


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