Jorge Lucio de Campos
Marcel Duchamp. Fresh widow, 1916.
INTRODUÇÃO
A intenção deste
trabalho é traçar um esboço das idéias formuladas por Erwin Panofsky e Pierre
Francastel em seus respectivos estudos sobre a figuração artística e os
sistemas de representação do espaço detectáveis na história da pintura
ocidental. O tema do relativismo das convenções espaciais, inaugurado pelo
primeiro e, posteriormente, problematizado pelo segundo, proporcionar-nos-á o
ensejo de transitar por um campo (que apenas aparentemente é restrito, já que
constitui uma matriz epistemológica decisiva para o próprio estatuto da
cultura) ainda pouco trabalhada em nosso meio acadêmico.
O projeto de
Francastel consistiu, entre outras coisas, em demonstrar o excepcional
interesse dos vínculos metodológicos existentes entre as artes e determinados
saberes não-artísticos, como a antropologia, a etnografia, a matemática etc.
Essa demarcação de uma mútua influência interdisciplinar dentro do percurso das
articulações discursivas abriu caminho para pesquisas sobre a visualização do
espaço na pintura (do século XV aos dias atuais) em que é analisado, com um
especial interesse pela psicologia, o desenvolvimento da linguagem figurativa.
Importa ressaltar que
o background da postura francasteliana é a convicção de que os modos de
representação pictórica do universo visual funcionariam como reflexos de
determinadas interpretações psicossociológicas da natureza que, por sua vez, se
sustentam sobre um conjunto geral de conhecimentos e regras práticas. Em
resumo, haveria um intenso paralelismo entre as modalidades da experiência
plástica e as tendências fundamentadoras, no tempo e no espaço, de cada código
cultural.
Para Francastel, a
arte, como qualquer outra linguagem, aponta para a organização e descrição das
zonas perceptivas da humanidade, ou seja, para uma autêntica função
gnosiológica. Tal paralelismo entre a figuração artística e a linguagem será
muito enfatizado já que ele concebe a obra de arte, enquanto signo, como uma
criação coletiva, uma espécie de terreno de encontro dos discursos.
Francastel, no entanto, não chegaria a tão ricas conclusões sem Panofsky.
Veremos que as teorias
de Panofsky sobre a representação do espaço se localizam, fundamentalmente, em
seu ensaio Die Perspektive als symbolische Form ('A perspectiva como
forma simbólica'). Ali é demonstrado, rigorosamente, que o sistema perspéctico
não se esgota como pura e simples diagnose das leis perceptivas, pois trata-se
de uma sobredeterminante e indesmontável elaboração espiritual. Todos os
trabalhos que o sucederam apoiar-se-iam, de alguma maneira, sobre essa poderosa
tese sem ousar alterá-la substancialmente.
O emprego da palavra
'perspectiva' (derivada do verbo latino perspicere = 'ver com clareza')
para designar sistemas vários de expressão visual do espaço gera uma incômoda
ambigüidade. Panofsky nos demonstra o quão necessária é a distinção entre o
emprego da geometria pelos antigos - como uma representação do mundo baseada na
avaliação e no cálculo dos ângulos visuais - e pelos renascentistas - como um
sistema de redução proporcional dos objetos segundo a distância. Correntemente,
no entanto, os termos 'espaço' e 'perspectiva', aplicados à Renascença, têm um
sentido bem definido e sobre o qual há uma concordância geral. A perspectiva
designa um sistema de agenciamento da superfície plana da tela onde todos os
elementos a representar são considerados a partir de um ponto de vista único e
as dimensões relativas das partes deduzidas, matematicamente, do cálculo da
distância dos objetos que aparecem numa relação com o olho sempre imóvel do
hipotético espectador.
O leitor deve ficar
atento para o fato de que essa definição é, sob alguns aspectos, arbitrária.
Sabe-se que a perspectiva, mesmo demasiadamente artificiosa, tem sido
considerada, por muitos e há muito, como a única técnica eficaz de
representação do espaço. Esta não é uma convicção partilhada por Panofsky que
considerará perfeitamente válidos também os sistemas não-perspécticos. Um
deles, o que predominou na Antiguidade, constitui uma representação na qual os
objetos são situados uns em relação aos outros sem que o ponto de vista do
espectador se imponha ou se comporte como uma medida comum entre eles. O espaço
propriamente dito é sugerido pelo fundo aéreo colorido (perspectiva
atmosférica), confunde-se com o próprio ambiente e não coincide com a
construção linear. O mérito maior, nesse campo, dos séculos XV e XVI foi terem
chegado a uma centralização rigorosa do ponto de vista e, ainda, a uma redução
de todo o universo ao visível, que puderam proporcionar a introdução de uma
unidade de medida do espaço.
No
Foi
Por outro lado,
Panofsky vê na perspectiva uma representação do universo cujo caráter simbólico
imediatamente se impõe. Para Francastel, uma obra artística não pode se
resumir a uma simples transposição, seja qual for o seu caráter, da
realidade. O objeto e o artista nunca estarão fora de um mundo sensível e de um
mundo social no qual interagem. Peinture et société foi escrito
justamente para defender a idéia de um valor, mais do que 'simbólico',
'semântico' da obra de arte. A perspectiva não seria apenas um veículo de
exteriorização, mas um atruibuto da atividade criadora e de seus resultados,
uma estrutura, no sentido mais vigoroso da palavra.
Uma vez nesse
contexto, procurar-se-á na primeira parte, intitulada 'A intencionalidade
histórica da representação espacial', achar a atenção do leitor, inicialmente,
para a incisividade do pensamente de Alois Riegl e da noção de Kunstwollen,
bem como para a importância de Cassirer e da concepção simbólica das formas
culturais, sublinhando a importância de ambas na obra panofskiana. Depois
abordaremos, mais detalhadamente, o tema em questão conforme surge no texto
fundamental do historiador alemão: A perspectiva como forma simbólica.
Na segunda parte, intitulada 'A virtualidade do espaço na figuração do imaginário', proceder-se-á a uma exposição dos aspectos centrais da sociologia de Francastel, sempre buscando articular uma constante convivência entre estes e as convicções de Panofsky. Será a ocasião de mostrarmos o quanto as teorias de Piaget no campo da psicologia genética se aproximam de seu programa.