Jorge Lucio de Campos



Paul Klee. A morte e o fogo, 1940.


Integrante da série Perfis do Rio, Helio Oiticica - Qual é o parangolé?, do poeta e ensaísta Waly Salomão, compõe, ao longo de seus quatorze capítulos, um painel, sem dúvida, bastante útil acerca dos lances, fatos e inquietações que marcaram a biografia do artista carioca morto, prematuramente, aos 42 anos de idade. Para avigorar seu depoimento (o texto funciona melhor quando nutrido pelos calores descritivos de seu autor do que quando se presta ao comentário analítico propriamente dito), Waly se vale, sobretudo, de dois trunfos: em primeiro lugar, das potencialidades de seu próprio estilo carnavalizante e 'enviesado' - como ele próprio, de cara, o batiza (cf. "Questão de método"); e, principalmente, de suas experiências pessoais, fruto privilegiado de uma íntima convivência com o amigo.

Oiticica foi, juntamente com Lygia Clark e outros não menos cotados, responsável por uma espécie de processo de reconhecimento definitivo, junto à crítica internacional, das potencialidades de nossa arte no pós-guerra. Na verdade, toda a sua obra foi concebida pari passu com as melhores sacações norte-americanas e européias, contribuindo igualmente para o enriquecimento de toda uma gama de questões viscerais naquele período. Um dos primeiros a difundirem por aqui a arte ambiental e processual, os bólides, penetráveis, ninhos, núcleos, metaesquemas e parangolés como que coroaram suas irrequietas pesquisas, ao longo dos anos 60 e 70, em múltiplas direções.

O caráter programático das várias experimentações de Oiticica é bem explorado por Waly quando de sua associação com artistas esteticamente polifônicos como Kurt Schwitters (cf. em 'Um rei vorticista: O elemento Hélio', a imperdível passagem sobre o flerte doméstico do jovem Oiticica com o Merzbau), Man Ray, Gertrude Stein, Buckminter Fuller, John Cage, etc. A valorização do embate titânico entre a ordem e a desordem (cf. também a alusão à empreinte nietzschiana e artaudiana), como elementos fulcrais de um temperamento em si mesmo 'plástico' como o dele é recorrente em todo o livro. Trata-se, em minha opinião, do ponto alto da versão ziguezagueante de Waly. De resto, seu texto meio que se dilui numa espécie de 'comovente' depoimento nomádico que, vez por outra, se vê prejudicado pelo estilo caudaloso e claudicante do depoente que vira e mexe e se repuxa e dobra e gruda em si mesmo, dando a impressão de interromper muitas vezes o que poderia constituir uma valiosa linha de raciocínio.

Creio que, diante de tal percalço, o ideal para o leitor será mesmo partir para uma leitura cruzada explícita, ou seja, dispor lado a lado, sobre a mesa de consulta, o approach magmático de Waly e um outro contraposto a ele - sugiro um do tipo 'cirúrgico' como o de Celso Favaretto em A invenção de Hélio Oiticica, estudo explanatório publicado pela Edusp, em 1992 - e, então, trabalhar sua intercomplementaridade. O empreendimento intelectual advindo desse novo embate entre o apolíneo e o dionisíaco - e que, muito provavelmente, deverá ressonar em sua cabeça - renderá, na pior das hipóteses, bons resultados.  

Jornal do Brasil, 6/7/96.


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