PREFÁCIO A LIÇÃO DE ALVURA
Claudio Willer
Ler uma paisagem? Mas isso é possível?
Sim, para Jorge Lucio de Campos. Ao menos, em Lição de alvura, declara gostar de "um lugar onde/ se possa ler// em voz bem/ alta, um novo// dia de sol". De modo evidente, aqui e no restante deste livro, ele quer suprimir ou ultrapassar uma mediação, uma distância entre as palavras e as coisas. Busca a unidade do símbolo, ou signo, e da coisa simbolizada ou significada, superando a contradição entre as duas esferas. Por isso, poesia, para ele, não é linguagem ou criação sobre alguma coisa, referente a algo que lhe é externo, porém a tradução da própria coisa. Na passagem citada acima, o poema não trata apenas do poético: vai além, identifica-se a ele. O texto não descreve um dia de sol; antes, quer ser o dia de sol escrito. Assim como - e isso, já observei em outra ocasião - ao voltar-se para obras de artes visuais, este poeta não as está comentando, porém criando equivalências, no plano da palavra, ao que vê e sente.
Em uma obra regida de tal modo modo pelos princípios da analogia e das correspondências, a palavra é ativa, tem uma dimensão mágica, age sobre as coisas: "logo// o mar/ se tolda// enquanto/ falo". Aqui também, não se está falando de um mar que se tolda: fala e mar, palavra e mundo exterior a ela, se correspondem.
Em tudo isso, há uma superação de limites da própria linguagem, para registrar o "Som sem/ nome - // ereto em/ seu mistério", e descrever o indescritível, ou então, vamos logo utilizar o termo certo, por mais gasto que esteja, alcançar o inefável: "querendo/ apenas se// mostrar no/ que não// passa e/ não se// pinta - // no que/ se vê e// não se/ capta". Às vezes, esse registro silencia ou se retrai, limitando-se a reconhecer o indizível: "Cá dentro/ na cama// não sei o/ que digo// (o que/ penso?)// do gris/ que lambe// as trevas".
Fiel à radicalidade de seu intento, Jorge Lucio de Campos acaba, em passagens de Lição de alvura, por desconstruir a palavra: "crespo/ ainda/ quando/ dobra/ fala língua/ dentromar". Ou então, por aproximar-se da glossolalia, do fonema não-semantizado, inventando uma linguagem, própria, assim como o fizeram, cada qual a seu modo, Huidobro, Michaux e Artaud:
– aq
ui s dor
me
de
ver
da
d a m nch
s
co
a
d v g r
De modo mais evidente neste poema, mas também no restante de Lição de alvura, a condensação é um valor que pode ser associado à poesia de Jorge Lucio de Campos. Economia não é, em si, atributo indispensável da boa poesia. No entanto, estes versos curtos, às vezes quase monossilábicos, com algo de telegráfico, podem ser associados ao rigor, a um grau extremo de precisão e concentração. Cabe lembrar, a propósito, a palavra alemã para escrever poesia, dichten, que contém dicht, denso, concentrado. Portanto, escrever poesia, em sua acepção original e na obra de Jorge Lucio de Campos, é adensar, tornar mais concentrada a linguagem.
É um sintoma de crise das mediações, especialmente da crítica, que Jorge Lucio de Campos não esteja catalogado como um dos principais poetas contemporâneos brasileiros. Por mais que já tenha sido repetidas, ajustam-se a ele com especial precisão as observações de Octavio Paz sobre os autores tidos como herméticos, em El arco y la lira: "A solidão do poeta mostra o descenso social. A criação, sempre na mesma altura, acusa esta baixa de nível histórico. Daí que, às vezes, nos pareçam mais altos os poetas difíceis. Trata-se de um erro de perspectiva. Não são mais altos. Simplesmente, o mundo que os rodeia é mais baixo".
O autor de Lição de alvura e de À maneira negra e Belveder ainda não estar sendo discutido e estudado serve como sinal de alerta, mostrando que essas observações continuam valendo para o cenário cultural brasileiro. Mas, enfim, se aqui já estamos começando a ler autores como Paul Celan e Yves Bonnefoy, algum dia também leremos os poetas “difíceis” que não estão aí para brincadeiras e modismos e são nossos contemporâneos, os Age de Carvalho, Jorge Lucio de Campos e (felizmente) mais alguns.