Era mais ou menos duas da manhã. As portas
não tinham ficado fechadas há tanto tempo assim mas o calor fazia com que o ar ficasse
quente e viciado. Isso sem contar o detestável cheiro de carne apodrecendo que parecia
querer tomar o lugar. Os dois corpos pendurados ainda balançavam quando o vento batia de
leve vindo da janela e o sangue havia chegado naquele maldito estado em que deixa de
escorrer e começa a pingar de leve, fazendo aquele barulho chato que uma torneira faz
quando alguém esquece de fechar direito. David continuava ali, parado na porta com a arma
na mão enquanto Jack continuava com sua tentativa frustrada de cobrir os rastros e as
evidências.
Jack era o tipo de garoto que fazia o estilo punk revoltado. Costumava
tocar com uma bandinha de hardcore no Live and Let Die, um barzinho meia boca no
subúrbio. Acho que o nome da banda era The Army ou Enemies of the System. Um desses dois.
Aliás, eu odeio esse tipo de coisa, o cara rouba uma guitarra, aprende três acordes,
arranja um bando de amigos desocupados, soca a turma toda dentro da garagem dos pais e
quando a mãe pergunta onde ele estava e por que não foi à escola ele diz que formou uma
banda e que estava fazendo música. Depois eles gravam uma demo, levam até o estúdio de
um amigo que conhece o primo de um colega do sobrinho do dono de uma gravadora e então...
bingo! Está fabricado o mais novo expoente do rock and roll mundial. Pelo menos por um
verão. Já vi isso acontecer pelo menos uma dúzia de vezes.
Mas esse não era o caso do nosso amigo Jack. Ele era só um idiotinha sem a menor
capacidade de fazer alguma coisa sozinho além de se masturbar ou limpar o próprio
traseiro. Lembrava um pouco a mim mesmo no tempo em que fiz parte do bando de Floyd, na
costa leste. Muito potencial mas pouco cérebro.
David era diferente. Se não era educado, pelo menos sabia se vestir. Tinha um pouco mais
de classe. Andava sempre de terno e gravata, onde quer que fosse. O cigarro na boca e os
óculos escuros eram acessórios praticamente indispensáveis. Às vezes me perguntava
quantas vezes ele já havia assistido a Cães de Aluguel. Era um pouco confiante demais em
suas próprias capacidades, é verdade, mas todos nós sabíamos que um dia isso o levaria
à ruína. Eu mesmo fiz o possível e o impossível para que ele entendesse. Nesse ponto
posso dizer que todos nós fizemos o máximo. Humildade nunca foi a virtude mais popular
entre os nossos, se é que você me entende.
Não sei direito como se conheceram mas me lembro quando vi os dois pela primeira vez. Foi
numa casa noturna no centro velho, durante um show reservado do Black Crowes.
Jack estava sentado com David numa mesa em frente a minha, planejando um assalto a banco.
Não parecia nada muito elaborado. Os dois simplesmente pretendiam entrar no lugar durante
a noite e levar tudo o que pudessem carregar. Uma tática extremamente suicida. Tudo muito
simples. Então os dois se levantaram e saíram do clube.
Segui os dois e observei toda a operação. Saldo total? Quatro vigias mortos e sete mil
dólares em notas novas. Promissor, não? Pois é, foi exatamente o que pensei. Qualquer
idiota podia perceber que eles tinham um certo potencial. Além disso, em tempos de guerra
não há muito tempo a perder: pega- se o que se tem. E foi o que fiz.
Não foi difícil encurralar os dois num beco qualquer. Menos difícil ainda foi quebrar
os dentes do Jack quando ele acertou um tiro no meu ombro ou desarmar David antes que ele
tentasse a mesma besteira.
É claro que eu estava me divertindo muito com tudo aquilo. Mesmo depois do que eu havia
feito eles ainda achavam que podiam fazer alguma coisa e, pensando pela lógica deles,
dava até para entender. Podia até ver uma certa fagulha de esperança nos olhos dos dois
infelizes ( muito mais em David do que em Jack, uma vez que ele ainda estava ocupado
demais com a hilariante tarefa de cuspir as lascas dos dentes quebrados). Era uma chama
fraca mas existia.
Pelo menos até mostrar para eles que eu era um vampiro. Cara, você devia ter visto o
rosto daqueles dois. É engraçado que com quase cinqüenta e cinco anos como um
sanguessuga eu não tenha me acostumado ainda mas...porra, aquilo era divertido demais! Os
dois não tinham a mínima idéia do que estava acontecendo, ficaram ali paralisados de
medo e espanto, borrando as calças, com os olhos esbugalhados e a boca aberta num grito
mudo. E sabe o que EU fiz? Simplesmente sentei- me no chão e comecei a rir. Ri como o
mais alucinado e louco de nossos membros.Ri por ter mostrado com tanta facilidade para
aqueles dois infelizes o quanto a humanidade é frágil. Quando terminei meu acesso
repentino de alegria espontânea eles ainda estavam ali, imóveis como dois postes.
Jack ainda teve uma reação um tanto quanto inesperada, atirando no meu peito e
perfurando um de meus dois inativos pulmões, mas era exatamente isso o que eu queria.
Queria ter a certeza que eles saberiam exatamente o quanto eram insignificantes, que suas
raivas e anseios representavam tanto para mim quanto os pensamentos de uma cadela no cio.
Que saberiam exatamente o que estariam deixando para trás quando se tornassem um de nós.
Que aquela seria a última e derradeira humilhação de suas pobres e medíocres vidas
mortais. Que entendessem exatamente o que se tornariam quando aquela noite chegasse ao seu
fim.
E foi só quando tive certeza de tudo isso que dei- lhes o restrito acesso ao clube dos
imortais.
-Y-
Bem, como todos devem ter notado haviam ainda
algumas formalidades a serem preenchidas. Ninguém se torna um vampiro DE VERDADE se não
passar pelos rituais de criação. Afinal de contas, são eles os responsáveis pelo que
REALMENTE nos tornamos, não é mesmo? É como costumam dizer por aí: NO PAIN, NO GAIN.
Aliás essa parte da história é sempre a mais interessante. Cada um reage
à sua própria maneira aos rituais. Alguns arrebentam seus caixões e escavam o caminho
de volta até a superfície na mesma noite e permanecem inalterados. Outros choram ao
perceber o que se tornaram e se recusam a admitir o inevitável (destes, poucos sobrevivem
ou tornam- se úteis). Jack e David não foram diferentes. Os rituais transformaram e
uniram os dois de uma forma irreversível.
David levantou do caixão ofegante, tomou cerca de três litros de sangue e acendeu um
cigarro como se nada tivesse acontecido. Sua primeira frase foi: "Onde estão meus
óculos escuros?"
Jack só acordou dois dias depois, louco como um demônio. Durante quase uma semana não
foi capaz de dizer nada além de grunhidos e palavrões ininteligíveis. Alguns vampiros
recém criados não agüentam o impacto psicológico imposto pelos rituais e passam a ter
flutuações de humor e comportamento, depois tornam- se paranóicos em potencial e se
transformam em psicopatas com fortes e legítimas tendências homicidas. Com direito a
carteirinha de sócio do Clube Internacional dos Serial- Killers e tudo o mais. Jack era
um deles.
Até aí tudo bem, eu também era. Acontece que o problema com Jack era um pouco mais
complicado. Traumas de infância ou complexos escondidos naquela privada entupida que
costumamos chamar de cérebro costumam voltar com força total durante o sepultamento. A
coisa funciona mais ou menos como se você resolvesse dar um enorme festa na sua cabeça,
não tivesse convidado os caras e eles aparecessem de surpresa na maior cara de pau.
Lembro que quando passei pelo ritual vi umas quinhentas vezes o dia em que peguei meu
velho estuprando minha irmã mais nova. Jack deve ter passado por alguma coisa bem
parecida. A única diferença é que, até onde sei, ele nunca teve uma irmã mais nova.
Apesar de todos os fatores, Jack nunca havia se tornado um grande criminoso. Nunca tinha
ido muito mais longe do que roubar uns toca fitas para financiar sua dose diária de pó.
Pelo menos até aquele assalto a banco. Talvez ele nunca tivesse passado disso se não
houvesse conhecido David. Este sim foi seu verdadeiro guia turístico em sua viagem pelo
submundo.
O fato é que Jack era só um moleque normal com um grande potencial para se tornar um
grande assassino. Um potencial que descansava sossegado num canto escuro esquecido do
cérebro do rapaz. Um garoto com talento para se tornar um grande desenhista nunca irá
saber disso enquanto não tiver um lápis na mão e uma folha de papel na frente. Jack
jamais saberia que tinha vocação para matar se não tivessem lhe dado uma arma na mão e
colocado alguém à sua frente para servir de alvo.
Tudo isso fazia com que eu visse aquele idiota quase como um filho. Sei que isso não é
muito comum ou aconselhável entre os membros de nossa "família" mas o que eu
podia fazer? Como iria adivinhar o que aconteceria mais tarde?
O mais estranho é que, mesmo com tudo isso, Jack não representava o menor perigo. Eu já
havia passado por todos os problemas que ele "vivia" e sabia como combatê- los.
Jack estava absolutamente sob controle.
O problema era David.
-Y-
David ou Dave, como já estava me acostumando a
chamá- lo, estava muito longe de se encaixar no estereótipo comum de ser humano, aquele
tipo normal que você encontra no supermercado procurando a seção de produtos
dietéticos ou lavando o carro em frente de casa todos os domingos à tarde. Muito pelo
contrário.
Só para começar, Dave já era um criminoso antes mesmo de se tornar um
vampiro. De acordo com os médicos que cuidaram dele no reformatório em que esteve na
adolescência, ele tinha uma espécie de disfunção num setor específico do cérebro
ocasionando alucinações e tremores no corpo quando se submetia a momentos de grande
tensão. Foi por isso que ficou imóvel quando ataquei os dois naquele beco.
Dave está na lista dos mais procurados em pelo menos cinco estados. Esteve em todos os
jornais na época em que se meteu naquele caso de seqüestro mais ou menos uns três anos
atrás. Foi líder de uma gangue de adolescentes no México, trabalhou com tráfico de
drogas como crack e cocaína em Miami e fez parte de um grupo que administrava cerca de
setenta por cento dos prostíbulos da costa oeste. Passou dois anos na cadeia,
conseqüência de um assalto mal sucedido. Ouvi falar que tem pelos menos seis mortes não
creditadas em seu currículo e quatro processos de vitimas de agressão rolando na
justiça. Dizem que dois cartéis colombianos estão à sua procura desde que ele
"desapareceu"com um carregamento de armas vindas do Líbano.
Claro que mais da metade disso tem grandes chances de serem apenas boatos mas, analisando-
se com cuidado o notável currículo de nosso adorável rapaz, pode- se notar facilmente
qual era o ponto crítico na história toda.
O lance é que Dave era o demônio encarnado antes mesmo de se tornar um vampiro. Não
consigo entender ainda o que pode ter dado tão errado em sua vida mas em algum momento
ele deve ter ultrapassado a estreita linha que separa os normais dos completamente insanos
e , quando pensou em voltar, já era tarde demais.
Uma vez que Dave parecia ser a perfeita personificação da Besta em todos os seus
aspectos, seria de se esperar então que o fato de ter se tornado um sanguessuga seria a
gota dágua que faltava para que o copo transbordasse e ele pirasse de vez. Mas não
foi o que aconteceu.
Pelo menos não aparentemente.
Após os rituais, Dave se tornou um homem calmo e discreto. Suas ações eram extremamente
comedidas e planejadas. A disfunção que tanto o atormentara parecia ter sido
completamente curada, encerrando de vez os tremores e alucinações que sofrera em sua
vida mortal. Tornou- se frio e manteve sua indiferença quanto à vida de outros seres
humanos mas, fora isso era um cara como qualquer outro.
Do tipo que se vê lavando o carro todo domingo à tarde.
-Y-
Jack já estava se acostumando à vida de vampiro e
se divertia com isso. Vi- o mais de uma vez correndo atrás de prostitutas pela madrugada
com as presas e garras expostas, somente para encurralar as desgraçadas e estuprá- las
como jamais teria coragem de fazer em seus tempos de mortal. Por outro lado, os
componentes de sua banda começavam a dar sinais de cansaço quanto a irresponsabilidade e
inaptidão musical de Jack. Certo dia, os três integrantes fizeram um pequena reunião e
resolveram expulsar Jack do grupo.
Na manhã seguinte os três rapazes foram encontrados mortos num beco
próximo ao Live and Let. Na parede estava pixado algo mais ou menos como "Vão pro
Inferno e toquem a canção de Lúcifer. Mandem lembranças minhas ao Senhor das
Trevas."
Dave e Jack haviam se tornado grandes amigos depois do acontecido. Não chegava a ser algo
tão forte como dois irmãos, digamos assim mas era uma coisa bastante significativa para
se passar desapercebida. Era mais ou menos como um sentimento de cumplicidade.
Os dois conquistaram rapidamente um respeito bastante considerável em nosso bando. Não
que todos adorassem aqueles dois mas eles já haviam provado seu valor em combates pela
nossa causa, e isso sempre significou muito entre os nossos. Por isso, cerca de um ano
após o Abraço,meus amigos já eram considerados os dois membros mais importantes de
nossa pequena "família". A dupla dinâmica, como costumavam dizer.
Como eu disse, estava tudo indo muito bem. Mas havia uma tempestade se aproximando. E das
grandes.
-Y-
Analisando- se friamente, aqueles eram tempos um
tanto quanto difíceis. Nossa seita estava se expandindo rapidamente, é verdade, mas
havia alguma coisa muito errada. Havíamos banido ou exterminado cerca de setenta por
cento dos vampiros que se recusavam a aceitar nossa mensagem de salvação. A cidade era
praticamente nossa.
O problema eram os outros trinta por cento. Pelas nossas contas, os que
faltavam eram exatamente os mais antigos, correspondentes ao regente da cidade e sua corja
( uma espécie de "rei"dos vampiros locais e sua "corte"de puxa sacos
e capachos ).
Invadimos o cemitério e procuramos em cada toca de rato, cada buraco ou vala aberta e
não encontramos absolutamente ninguém. Bem, concluímos, eles só podiam ter partido da
cidade com o rabo entre as pernas e procurando pelo primeiro caixão vazio que
encontrassem, assim podiam dormir como os velhos cansados e esclerosados que eram e
esquecer o pesadelo em que seu lindo e maravilhoso domínio havia se transformado. Só
podia ser isso. Gargalhamos, achando graça de nosso próprio raciocínio e imaginando as
caras dos imbecis correndo em pânico antes que o sol nascesse.
E foi só quando a última gargalhada morreu que eles apareceram. Eram sete vampiros
caíndo das árvores como frutos maduros e surpreendo- nos como um bando de renegados
idiotas.
Eles foram derrotados é verdade, mas perdemos vários dos nossos. Alguns foram
exterminados logo de cara enquanto outros foram gravemente feridos. Jack estava entre esse
últimos.
Se você já viu um daqueles filmes sobre o Vietnan onde os caras mostram os soldados
americanos completamente perdidos enquanto os vietcongues atiram sabe se lá de onde,
derrubando os ianques um a um como se fossem aqueles patinhos de tiro ao alvo num parque
de diversões, já tem uma leve noção do que aconteceu naquele momento. O caso é que,
entre mortos e feridos, só ficamos eu e Dave. Ninguém acredita mas foi mais do que
suficiente. Guardo até hoje o crânio daquele regente imbecil. Não me zango com os que
não acreditam mas foi exatamente isso o que aconteceu. O resto é história.
Como disse antes, Jack tombou no meio da briga e por pouco não bate as botas. Seu estado
ainda era bastante crítico e, mesmo sendo um vampiro, talvez não resistisse mais do que
um ou dois dias.
Dave foi bastante afetado por isso. Aliás, essa foi a primeira vez em que entendi a
verdadeira extensão da amizade existente entre aqueles dois. Era mais do que
cumplicidade. Era um vínculo.
Um vínculo de sangue pessoal, intransferível e muito forte. Mais forte ainda que aquele
que os membros de nossos bandos firmam uns com os outros durante os rituais de criação.
Dave permaneceu ao lado de Jack durante a primeira noite inteira enquanto eu e os outros
saímos para caçar. Quando voltamos Dave havia partido.
À principio achamos que ele havia saído para se alimentar mas depois de exatos dois dias
após o seu sumiço nos demos conta de que ele não voltaria nunca mais.
Ao contrário do que pensávamos, Jack se recuperou rapidamente. Menos de uma semana
depois da batalha os ferimentos já estavam quase totalmente cicatrizados e ele já podia
andar, mesmo que com alguma dificuldade. Mais alguns dias e ele já podia voltar as ruas e
caçar seu próprio alimento. Durante o tempo em que ficara de cama nós costumávamos
raptar alguns humanos, em sua maioria garotas entre dezessete e dezenove anos, e
levávamos até ele para que não morresse de fome. Nenhuma delas sobreviveu à sede
insaciável de Jack ou ao seu sadismo refinado mas sabe como é... não se pode fazer um
omelete sem quebrar os ovos. Não que ele fosse totalmente desumano, embora estivesse
muito próximo disso, mas a vida ( ou como quer que ela se chame depois que se está morto
) pode se tornar extremamente entediante quando se está de cama. E se você tem uma faca
na mão e alguém com quem brincar...bem, espero que você tenha captado a mensagem.
Quando contamos sobre Dave ele apenas sorriu de leve e
disse: "Eu sei".
-Y-
Dois anos se passaram desde nossa grande rebelião.
A cidade era incontestávelmente nossa e cada vez mais um número maior de vampiros
descontentes com o sistema vigente ingressavam em nossas fileiras. Não havia mais nenhuma
resistência ali. Os antigos dominantes se quer se deram ao trabalho de enviar outro de
seus cordeirinhos para tomar o lugar do defunto e assumir o lugar que era seu por direito.
Aliás, eu acho extremamente engraçados estes regentes. Eles ficam dentro
de suas mansões, sentados em seus tronos sanitários esperando que algo aconteça,
praticando seus exercícios de poder quando um vampiro novo entra na cidade e se apresenta
diante de "Vossa Majestade", decorando seus amontoados de leis vazias e
antiquadas e maquinando sua próxima estratégia no joguinho de intriga que eles mesmo
criaram para passar o tempo. E tudo isso para que?
Querem que representemos o papel de Lobo Mal em seu conto de fadas, querem que cumpramos a
função de vilões da história enquanto nosso verdadeiro objetivo é salvar a todos nós
da ira dos Antigos.
Quando chegar a hora nós saberemos quem estava certo.
Bem, embora todo esse discurso pareça excessivamente panfletário, era exatamente deste
modo que a coisa toda funcionava ( e ainda funciona ). Nunca fizemos nada sem que nosso
ideal estivesse por trás, mesmo que das maneiras mais sutis. Algum de nós eram mais
entusiasmados e se entregavam de corpo e alma ( se é que vampiros ainda a tem ) à nossa
causa. E Jack era um deles. Isso fez com que naturalmente assumisse a liderança de nosso
bando. Por mim tudo bem, é claro. Sempre achei justo que o melhor dos nossos assumisse o
comando.
O que mais me surpreendia é que ele estava bem longe de ser aquele moleque imbecil que
mijou nas calças a primeira vez que me viu, dois anos atrás. Ele estava mais maduro, é
verdade, mas estava ficando cada vez mais louco.
O processo começou principalmente depois que Dave partiu. Não sei se aquilo representava
uma consequência do elo que os dois haviam mantido mas Jack tinha acessos cada vez mais
frequentes de violência injustificada. Sei que essa é uma prática e até uma
característica bastante comum entre nós ( como já disse, eu mesmo não era o maior
exemplo de sanidade mental ) mas Jack matou seis policiais, duas prostitutas, três
marginais, e uma dançarina em menos de duas semanas. Que fique bem claro que o problema
não era a quantidade de vidas perdidas ou mandadas para o Inferno mais cedo, por mim os
humanos que se danem, mas sim a atenção que isso atraía para nós. A imprensa
sensacionalista já começava a divulgar o caso do misterioso assassino serial que rondava
a cidade. E a última coisa que nós queríamos naquele momento era um esquadrão de
policiais da SWAT nosso rabo. Não podíamos pôr a perder o controle da cidade por causa
de uma loucura temporária de nosso adorável líder.
O que fizemos então foi deixar a cidade nas mãos de nossos "superioes" e sair
de lá o mais rápido possível. Claro que não era nada agradável deixar tudo aquilo
pelo que lutamos para trás mas fazer o que? A "vida"é assim mesmo.
Nào havia nenhuma cidade grande num raio de mais ou menos duzentos quilômetros, então
nossa idéia era seguir de uma cidade pequena para outra até chegar à capital, onde
poderíamos nos estabelecer definitivamente. Vale lembrar que alguns de nós resolveram
ficar e tentar a sorte montando seus próprios bandos, de modo que nosso número de
integrantes diminuíra sensívelmente de doze para quatro: eu, Jack, Layton e Carlos. Era
estranho mas ao mesmo tempo interessante. Era quase como voltar aos velhos tempos.
-Y-
Jack sugeriu que fizéssemos nossa primeira parada
numa cidadezinha interiorana chamada Smallvile ou coisa parecida. É engraçado notar a
falta de originalidade desses caras ao batizar cidades. Por que a gente nunca vê cidades
com nomes legais tipo "Hell" ou "Purgatory"? Que merda...
Bem, o caso é que nos hospedamos num hotel totalmente podre, que cobrava
sessenta e seis cents pela diária e tinha pelo menos uma dúzia de baratas e mosquitos
passeando pelo quarto como acessório adicional. Layton disse que devíamos ter pedido a
suíte presidencial e todos rimos satisfeitos.
Foi em minha primeira caçada que encontrei Floyd sentado num sarjeta em frente ao mercado
local. Era um membro de nossa seita que estava na cidade. Não sei se já disse isso mas
conhecia Floyd há um bom tempo, desde a época em que fiz parte de seu bando há uns dez
anos atrás, um pouco antes de conquistar autonomia para formar o meu próprio. Fazia um
bom tempo que não o via mas ainda me lembrava muito bem dele. Era um cara legal desde que
se evitasse qualquer tipo de discussão. Desde algo sobre a cor das caixas dos novos
cereais matinais da Kelloggs até o resultado do utimo jogo dos Lakers, qualquer
debate era perigoso quando se tratava de Floyd. É que ele tinha uma grave têndencia a se
descontrolar emocionalmente, e quando isso acontecia as consequências não costumavam ser
nada agradáveis. Portanto, quando se falava com ele, a melhor tática era concordar com
praticamente tudo que dissesse.
Perguntei a ele onde estava o resto do bando mas não houve resposta. E nem precisou.
Nunca havia visto Floyd daquele jeito, silencioso e abatido, falando baixo como um velho
asmático prestes a dar o último suspiro. Como eu disse, não era muito difícil deduzir
o que havia acontecido. Estavam todos mortos.
Alguma coisa terrível havia acontecido e só Floyd havia sobrevivido. E mesmo isso não
iria durar por muito tempo, uma vez que havia um rombo mais ou menos do tamanho de uma
bola de tênis nas costas dele. O cara bateu as botas antes que eu pudesse perguntar quem
tinha feito aquela merda toda. Felizmente, ou infelizmente dependendo do ponto de vista,
encontrei a chave do apartamento onde achei algo bastante interessante. O diário de
Floyd.
A letra do cara era horrível mas deu para reconstituir os últimos acontecimentos. Um
vampiro novo tinha chegado na cidade vindo sabe- se Deus de onde e se isolou num celeiro
abandonado na parte rural da cidade. Um mês depois ele entrou em contato com o bando de
Floyd convidando- os para uma espécie de visita ao seu refúgio, como se fosse uma
espécie de política da boa vizinhança. O nome do cara era Daniel ou coisa parecida. .
Aquilo era um ótimo negócio para Floyd e os rapazes, uma vez que eles estavam sendo
perseguidos por um grupo de caçadores desde que deixaram Los Angeles. E quando se está
nessa situação a última coisa recomendável é permanecer no mesmo lugar por muito
tempo. Como disse, um celeiro abandonado viria bem à calhar. Mesmo que ele não estivesse
mais tão abandonado assim. Depois disso a narrativa terminava.
Não era preciso ser muito esperto para adivinhar que o tal do cara era o responsável
pelo massacre.
Bem, a minha idéia era voltar até o hotel, convocar meus valorosos companheiros e
quebrar a cara do filho de uma cadela que havia feito aquilo com meus antigos parceiros
mas tive uma grande surpresa quando cheguei. Não havia ninguém lá. A única coisa que
encontrei foi um pequeno pedaço de papel retângular. Um convite amigável para uma
reunião de confraternização entre vampiros da mesma seita num celeiro abandonado, na
parte rural da cidade.
E embaixo, assinado em letra bem pequenas estava escrito o nome do ilustre anfitrião.
Era Dave.
-Y-
Confesso que fiquei completamente sem ação. Tudo
bem, crueldade era uma virtude das mais aceitáveis mas a pergunta era POR QUE ele tinha
feito aquilo. Conheci Dave tenmpo suficiente para saber que ele não teria feito aquilo
sem um bom motivo. A não ser que ele tivesse mudado completamente, que tivesse se tornado
algo totalmente diferente. Algo REALMENTE mal. Que ele tinha um grande poder já tinha
dado para sacar, nenhum vampiro faz o que ele fez com o bando de Floyd com tanta
facilidade.
O caso é que o cara tinha jogado a isca e Jack e os outros tinha caído
direitinho. Não sabia exatamente o que ele iria querer com os caras mas dava para
concluir que não devia ser nada muito legal.
Nesse momento duas opções bem nítidas surgiram na minha mente. Eu podia fugir como um
rato e não interferir em nada,o que não chegava a ser um crime uma vez que EU havia
criado todos os vampiros do meu bando e eles já tinham idade suficiente para decidir seu
próprio destino, ou ir até lá e tentar terminar essa história com o melhor final
possível. Na dúvida, escolhi as duas opções.
Quando cheguei até o celeiro entrei por uma janela e me escondi num daqueles
reservatórios de feno que ficam próximos ao teto. Sem que pode parecer estranho que
ninguém tenha me visto mas, acredite, eu tenho poderes para isso.
E foi assim que pude observar tudo.
-Y-
O lugar era estranho. Não vou me prender a detalhes mas, cara
aquilo era horrível até para mim. Haviam crânios e membros espalhados por todo o lugar,
sangue colhido em taças enfileiradas em cima de um enorme altar negro e um gigantesco
pentagrama desenhado no chão. Acho que deu para entender a mensagem...
Dave havia mesmo se tornado algo terrível. Algo que até mesmo nós
vampiros abominamos. Dave pretendia usar seus antigos amigos como matéria-prima para
algum ritual. Um GRANDE ritual. Talvez uma convocação ou coisa parecida. Ele tinha se
tornado um servo do demônio ou quem quer que fosse que governasse a força das trevas ou
coisa do gênero. Ou tinha ficado tão louco que REALMENTE achava que era um. Bem,
considerando- se o estrago nas costas de Floyd, a primeira opção parecia ser a mais
provável.
Jack e os outros já estavam lá dentro dentro, bem em frente ao Dave. Não lembro muito
bem o que ele disse naquela hora mas sei que os caras não gostaram muito, uma vez que
tanto Carlos quanto Layton sacaram as armas. Só Jack não fez nada.
E foi só quando Layton deu o primeiro tiro em Dave que Jack se mecheu e sacou sua arma. E
não foi para proteger Layton. Bom, para falar a verdade ele matou o Layton com um tiro
certeiro entre os olhos. E Carlos com certeza seria o próximo se não fugisse dali o mais
rápido possível. E não fugiu. Estava furioso e surpreso demais para correr. Como
prêmio por seu ato corajoso e imbecil, ganhou um belo tiro no pescoço que fez com que a
cabeça se separasse do corpo e rolasse até o pé de uma escada bem próxima. Esses eram
os meus garotos...
E então restaram só Jack e Dave. Os dois sozinhos naquele teatro de horrores em que a
coisa toda havia se transformado. Juntos os dois amarraram e penduraram os corpos por uma
corda grossa para que todo o sangue escorresse numa enorme bacia. Era aquilo que
precisavam para o ritual.
E enquanto os corpos secavam ali, pendurados como gados num frigorífico, eles se sentaram
calmamente e conversaram sobre os velhos tempos e à respeito de tudo que havia rolado
durante o tempo em que ficaram separados. Falaram das pessoas que encontraram, das novas
experiências, dos inimigos que haviam destruído no caminho e de coisas banais e idiotas,
como se fossem só dois amigos se encontrando para um bate papo inocente num bar no meio
do Inferno. E de certa forma era meis ou menos isso.
Foi quando eles viram as luzes dos faróis como dois fantasmagóricos olhos gigantes
vindos da estrada e chegando cada vez mais perto. Era uma caminhonete grande trazendo
cerca de sete pessoas.
Dave pegou a arma e seguiu até a porta pensando como os malditos colombianos tinham-no
achado naquele fim de mundo. Jack passou a tentar esconder alucinadamente qualquer
instrumento ou objeto que pudesse relacioná- los a algum culto satanísta, pensando em
como a Inquisição havia descoberto tudo.
Então Dave olhou para Jack sem dizer uma única palavra e ele entendeu o significado.
Até agora haviam compartilhado tudo o que tinham e arriscado a vida inúmeras vezes em
nome do outro e, se tinham que enfrentar mais este obstáculo, fariam do jeito que sempre
tinham feito. Juntos.
Bem, no final das contas não eram nem os colombianos ou tão pouco a Inquisição. Eram
os caçadores que estavam atrás de Floyd que desciam da caminhonete cuidadosamente e de
arma em punho quando foram surpreendidos pelo ataque suicida de Jack e Dave.
O que veio a seguir aconteceu muito rápido para que eu possa arriscar uma descrição
detalhada. Só sei que no final haviam quatro caçadores mortos e três gravemente
feridos. Talvez não durassem mais do que duas ou três horas se fossem deixados ali.
Quanto a Dave e Jack...
Até que se prove o contrário os dois devem estar mortos. Permanentemente, quero dizer.
Não encontrei o corpo de nenhum dos dois mas acho quase impossível que tenham
sobrevivido. Não vi os ferimentos mas vi a quantidade de balas que os caçadores
gastaram. E não foram poucas.
A não ser, é claro, que de algum modo eles tenham conseguido chegar até o celeiro, onde
podiam se abrigar da luz do sol e esperar que os ferimentos cicatrizassem. Talvez até
terminar o ritual que começaram ou mesmo partir dali como se nada tivesse acontecido e
iniciarem seus próprios bandos numa nova cidade. Espero que tenha entendido a mensagem.
Claro que tudo isso não passa de suposição. De qualquer forma os dois se tornaram uma
espécie de lenda entre os vampiros mais jovens. E eu me orgulho disso. Hoje entendo que
mesmo que quisesse não poderia ter interferido nos acontecimentos dentro daquele celeiro.
Desde o momento em que os criei eles não pertenciam a mim. Pertenciam a eles mesmo e,
como tal, tinham o direito de escolher o caminho que gostaríam de seguir. Qualquer
que fosse ele.
-Y-
Quanto aos caçadores, disse que três deles estavam
feridos mas haviam sobrevivido. Tinha que se dar um desconto para os pobres rapazes.
Afinal de contas, eram dois vampiros contra um bando de humanos imbecis e, numa situação
dessas, a própria sobrevivência já deve ser considerado um grande prêmio.
Apesar disso,qualquer idiota podia perceber que eles tinham um certo
potencial. Além disso, eu ainda tinha uma cidade para tomar.
E, como já disse antes, em tempos de guerra não há muito tempo a perder: pega- se o que
se tem. E foi o que fiz.