A Gaitinha de cinco dentes.
Era final de tarde. Os últimos raios de sol batiam amorosamente nas rugas de meu rosto. Com medo,fome e sono,punha-me em estado de vigília. A guerra prosseguia.
Entricheirado,sentia meu corpo de 18 anos apertado àquela farda mal-cheirosa. A escassa comida era bravamente disputada pelos ratos e, em uma vala comum,corria esgoto a céu aberto. Era difícil distinguir seres humanos de dejetos...
Para passar o tempo,arrancava alguns silvos de uma gaitinha de cinco dentes que levava comigo. A melodia contrastava com os urros de do dos feridos.
Àquela noite,não consegui dormir.O rádio anunciava a aproximação de um batalhão inimigo. Desesperados,os soldados armavam-se e punham-se de prontidão.
Um forte estrondo me arrancou da trincheira. A transpirar adrenalina,corri o mais rápido possível.O inimigo atacava. Pulei rapidamente no primeiro buraco que avistei.Preparei o fuzil e fiquei a espreita.
Observei que um ser de minha espécie vinha em minha direção. Arma em punho,corria sob os gritos monossilábicos de seu comandante. Em seus olhos,medo transbordava.
Percebo então que por ele fui avistado e colocado em sua mira.Pensei em minha mãe . Era ele ou eu. Ia morrer...!
Or sorte,disparo o primeiro tiro.Gemendo, ele cai ao meu lado e,dando-lhe como morto,preocupei-me com os outros soldados,mas o exército inimigo se dispersava. Ganhávamos a batalha.
Com o passar do tempo,senti o medo esvair-se. Levantei-me e olhei ao redor.Ninguém de minha tropa.Seria melhor passar a noite no buraco.
Ao sentar.percebi que o soldado inimigo não havia morrido ainda. A bala havia perfurado-lhe o abdome,à altura do Estômago, de onde fluia sangue grosso e quente.
Em primeiro momento,fui indiferente. Por que socorreria um infeliz que odiava minha pátria ,desprezava minha religião e queria ver a desgraça de meu povo ?!
Mas,com o passar do tempo,ensibilizei-me com seus gemidos de dor e as orações em sua incompreensível lingua.
Aproximei-me. Procurei em seu bolso algo que o identificasse.Encontrei uma fotografia. Ele estava mais jovem,com seus pais e irmãos. Pais e irmãos... Ele tinha uma família...! Talvez sua mãe estivesse rezando para que ele estivesse bem àquela hora. Mas não estava . Morria vagarosamente.
Desesperado,tentei tempar o furo da bala.Quem sabe aceitariam-no como prisioneiro . Ele percebeu que o tentava ajudar. Com um sorriso,disse algo em sua lingua. Deminha boca dura e seca somente conseguia arrancar pedidos de desculpas.
Enquanto estancava o sangramento,minha consciência me apregoava. Por que lutávamos ? Para quem lutávamos? Será que não havia me deixado levar por um sentimento irracional de bandeira-hino ? Emoção sobrepujando razão ? Não seria eu mais uma peça no xadrez canalha do sistema ?
Seu último suspiro veio com o primeiro raio de sol da manhã.
Peguei fortemente em sua mão e percebi que pendia algo nela .
Com o relaxamanto letal,o objeto caiu.
Era uma gaitinha de cinco dentes.
Adriano Leonardi.
Fanzine Visão Anarquista n.o 5
Abril/ 1993