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Como já foi dito, não há nenhum documento que prove a existência de teatro religioso em Portugal, mas sabe-se que, nas igrejas, pelo Natal e pela Páscoa, se realizavam “autos” ou “jogos”, que se ignora em que consistiam. As únicas provas de como era este tipo de teatro provêm dos países onde ocorreu um grande arranque cultural, como a Inglaterra, França e outras nações europeias.
Dentro do
teatro religioso existiam espectáculos que eram representados mesmo dentro das
Igrejas, como os mistérios, os milagres e as moralidades.
Mas também existiam uns cânticos, as laudes que não utilizavam o
recinto dos templos.
Embora
estes géneros de teatro fossem muito mais desenvolvidos do que os primeiros
esboços dos jograis, ainda se apoiavam muito mais na linguagem gestual do que
na verbal (salvo as moralidades) e, nos primeiros tempos,
eram representados por membros do clero que usavam como veículo de
expressão o latim. Os fiéis, se participavam, era como figurantes. Mas, pouco
a pouco, a situação foi-se modificando, os actores passaram a ser gente do
povo, o local de representação deixou de ser a igreja e a língua usada passou
a ser a do país.
Vamos então ver em consistia cada um destes géneros:
As laudes
Este género de teatro religioso distingue-se de todos os outros por não ser inicialmente representado num palco, mas sim nas ruas, caminhos e campos, por onde o povo e os frades caminhavam. As laudes derivam dos “tropos”: diálogos, cânticos e rituais que eram realizados alternadamente entre o padre, o povo, e o coro nas missas nas Igrejas. Só que as laudes eram feitas sob a forma de procissão (uma espécie dos actuais romeirinhos) ou eram declamadas, dialogadas e recitadas em degraus, pórticos e outeiros.
As laudes eram cânticos de louvor cujos principais temas eram as narrações dos Evangelhos que iam desde o Natal até à Paixão. Num estado mais avançado, chegaram a ter acompanhamento musical e até caracterização dos actores, e trocaram os seus locais de representação normais por palcos.
Esta representações tinham como tema principal as festividades religiosas descritas nas Sagradas Escrituras (Bíblia). O Natal, a Paixão e a Ressurreição, na Páscoa, eram alguns dos episódios mais frequentemente representados. Às vezes, especialmente em Inglaterra, estas representações duravam vários dias. Eram constituídas por quadros mais ou menos soltos e, numa fase mais avançada, cada um deles era representado por uma corporação, fazendo num dia, os armeiros, por exemplo, a expulsão do Paraíso (a espada flamejante); noutro, os padeiros a última ceia; noutro, os pescadores e os marinheiros dramatizavam o dilúvio; e por aí adiante, se bem que a ordem das cenas começasse por ser um pouco desorganizada, e não fosse como consta na Bíblia. Só mais tarde é que se começou a ordená-las devidamente.
Mais tarde, no início da Idade Moderna, a abusiva mistura do litúrgico e do profano levou a Igreja a proibir os mistérios.
Os milagres
Estas representações retratavam a vida dos servos de Deus (a Virgem, os Santos...) e nelas, por vezes, apareciam as pessoas a quem os Santos ajudavam. Mas não se ficavam só por aqueles que eram citados nos Livros Sagrados, também podiam referir-se a personagens da época, o que constituía grande interesse para o público.
Com o decorrer do tempo os milagres (ao contrário dos mistérios e das moralidades) não sofreram alterações e, quer o conteúdo, quer a forma de os representar mantiveram a sua forma original, o que levou ao seu abandono progressivo.
Quem escrevia os mistérios e os milagres não era geralmente um poeta muito dotado, mas ocasionalmente conseguia despertar emoções nas pessoas que observavam a sua peça ou também provocar algumas gargalhadas, embora não pudesse modificar muito a história em que se baseara, pois a Igreja defendia que as Escrituras deviam ser representadas vividamente diante do povo, dando pouca liberdade para inventar. Só muito raramente o autor criava personagens secundárias com as quais podia desenvolver uma ou outra pequena comédia. Por exemplo, inventaram-se discussões entre Noé e a sua mulher ou introduziram-se conversas entre pastores que iam adorar o menino.
As moralidades
As moralidades são representações que se desenvolveram mais tarde do que os mistérios e os milagres. Tal como estes, estavam repletas de ensinamentos cristãos, mas tinham um carácter mais intelectual e, em vez de utilizar as personagens da Bíblia, serviam-se de figuras que personificavam defeitos, virtudes, acontecimentos e acções. Eram personagens alegóricas como, por exemplo, a Luxúria, a Avareza, a Guerra, o Trabalho, o Tempo, o Comércio, a Esperança, etc. ..
As moralidades tinham sempre intenção didáctica, pretendiam transmitir lições morais e religiosas, e até, por vezes, políticas. Por isso, mais do que a mímica e a movimentação, mais do que o espectáculo que apela principalmente à vista, característico dos mistérios e milagres, as palavras são o mais importante.
As lições que delas se tiravam eram sempre edificantes, elas mostravam os bons exemplos que se deviam seguir, e só muito raramente continham sátiras ou pretendiam levantar polémicas.
A moralidade pode ser considerada um grande passo em direcção ao teatro moderno, mais do que todos os outros tipos de teatro, pois aqui o autor já pode desenvolver livremente os assuntos, embora mantendo-se dentro do tema principal destas representações: a luta entre o Bem e o Mal existente na alma humana. Tem mesmo oportunidade de analisar qualidades e defeitos e de dar relevo a determinadas características psicológicas das figuras. Pode por isso dizer-se que as moralidades, tendo começado como teatro religioso, vieram contribuir para a futura separação entre o teatro e a Igreja e para o nascimento do teatro popular profano.
É ainda de salientar que as moralidades foram aproveitadas pelos escritores dramáticos do Renascimento, embora algo modificadas.
Foi quando se trocaram os recintos da igreja pelas ruas e mercados e se deixou de usar o latim em favor da língua vernácula que a emancipação do teatro começou. O progresso dramático está muito ligado ao desenvolvimento das feiras, ao aumento da riqueza, ao aparecimento da burguesia e das corporações. Pouco a pouco, o teatro foi perdendo a sua ligação com a Igreja e com o clero, não sem resistência deste. Inicialmente eram clérigos os actores e os autores das dramatizações, mas, como já vimos nos grandes ciclos de mistérios, as corporações passaram a encarregar-se das representações, ficando o clero apenas com o papel de dramaturgo. Mas até esse acabou por perder com o correr do tempo.
O próprio teatro religioso foi perdendo importância, cedendo lugar ao teatro profano, que teve origem nos próprios géneros litúrgicos, que foram sofrendo alterações e desenvolvimentos. Este agradava mais aos escritores, visto que não havia qualquer tipo de restrições para a imaginação, e também ao público, que, a partir do Renascimento se foi progressivamente descentrando das relações do homem com Deus e se preocupou mais com o homem em si mesmo.