(In Caderno Seminal, Ano 8, Nº 13, Rio de Janeiro: UERJ/Dialogarts. - no prelo)
SEMIÓTICA: CIÊNCIA, MÉTODO E INTERDISCIPLINARIDADE.
Darcilia Simões (UERJ, 2002)

Assim como a lingüística textual e a análise do discurso, o suporte semiótico vem contribuir com uma análise mais ampla do material concreto (sistemas de códigos) e abstrato (discurso, ideologia) por meio do que são transmitidas as mensagens. (Simões, 2001:86)

 

Proposta de abordagem
 

Adentrar os umbrais da semiótica resulta em reeducar a percepção do mundo; redirecionar a capacidade de captação dos signos e significações resultantes da interação do homem com seu mundo interior e com o mundo que o cerca. Desenvolvendo um trabalho de pesquisa com a meta de dinamizar e otimizar o ensino de línguas - da portuguesa, em especial - percebemos que um caminho de alta produtividade seria o das teorias semióticas construídas por Charles Sanders Peirce (Collected Papers).

Lendo o mundo e seus fenômenos com sustentação nos processos de raciocínio, a semiótica de Peirce, por ele considerada como outra Lógica, parece-nos fornecer modelos de análise sígnica bem mais inteligíveis. A orientação semiótica peirceana triangula o signo em suas relações e elabora parâmetros de interpretação que se mostram seguros ao intérprete, uma vez que não se perde dos limites de significância do signo em si.

No panorama nacional, elegemos Santaella como nossa guia na compreensão da teoria peirceana. Em Santaella (2001), encontramos uma panorâmica de suas pesquisas e pudemos referendar com mais precisão o porquê de termos escolhido tal pesquisadora como nossa referência de leitura para os estudos semióticos no Brasil. A estudiosa também vem perseguindo os caminhos do texto com o objetivo de subsidiar o ensino da produção textual, partindo de análises que demonstram a inabilidade redacional de nossos estudantes, em geral.

 
Meta e objetivo
Entender a semiótica como uma ciência que nos ensina a "ver" por intermédio da exploração de todos os nossos sentidos, usando-os como "antenas" de captação de mensagens verbais e não-verbais, visíveis e invisíveis na estrutura dos textos com que interagimos diuturnamente.

Associar os conteúdos semióticos ao treinamento da disciplina mental, à organização do raciocínio científico, contribuindo assim para eficiência da produção de leitura e, sobretudo, da aprendizagem da língua portuguesa.

Vê-se, então, que, a meta é fundamentalmente pedagógica, pois se pretende entender melhor os caminhos da semiose e da produção sígnica, focalizando a representação verbal escrita como um processo eminentemente simbólico, portanto de terceiridade, segundo Peirce.

 

Estado da arte
A semiótica é uma ciência ainda desconhecida por muitos e, quando conhecida, meio que confinada aos espaços do texto não-verbal. Esta ciência teve suas origens no âmbito das ciências médicas (sintomatologia) e, posteriormente, transitou nos espaços da filosofia. No Brasil, tem sido explorada no âmbito das ciências da comunicação.

Nas ciências humanas, apesar da forte atuação de Saussure, Hjelmslev, Peirce (entre outros), não recebeu o tratamento adequado. No Brasil, deve-se, sobretudo a Lúcia Santaella, a divulgação das idéias do filósofo norte-americano. Envolvida com a teoria peirceana desde a década de 70, a estudiosa vem desenvolvendo pesquisas que têm ampliado o âmbito da aplicação da semiótica proposta por Peirce. Interessada em avaliar os problemas que interferiam na globalidade dos textos e percebendo que a gramática não dava conta da análise que extrapola a frase ou o período, mergulhou a examinar o texto em sentido lato, de modo que pudesse levantar dados que explicitassem o que dificulta a produção textual. O texto precisava ser entendido em seu sentido global; o texto como um todo significativo; o texto considerado independentemente da natureza do signo de que se constitui e do veículo que o faz circular. Por isso, a estudiosa, atravessando os limites dos gêneros textuais - descrição, narração e dissertação - acabou por chamar a si o estudo das linguagens tomadas como matrizes do pensamento; e enveredou por buscar, na natureza híbrida dos textos, explicações para os processos representativos da captação e apreensão dos fenômenos pela mente humana, vindo a construir a hipótese de que as três grandes matrizes lógicas da linguagem e do pensamento são as linguagens verbal, visual e sonora. (cf. Santaella, 2001: 20).

Destarte, nossas investigações no âmbito do não-verbal, tomado como ingrediente fundamental na produção e na leitura de textos, serem cada vez mais pertinentes, uma vez que os argumentos de Santaella apontam para questões geradas no âmbito da multimídia e da hipermídia como determinantes da compreensão da textualização contemporânea.

Hoje, temos nos ocupado da pesquisa da imagem textual (para além do verbal) e temos considerado o texto escrito (nosso objeto formal) como um objeto visual passível de análise por esquemas aplicáveis à semiótica da imagem e à semiótica lingüística de extração peirceana (cf. Nöth, 1995b). Por um e por outro enfoques, buscamos o levantamento das marcas textuais que norteiam, antes do processo da leitura em si, o itinerário da produção mesma do texto, o estabelecimento das relações sígnicas produtoras do sentido a ser veiculado.

 
Trajetória
Estágio I
Iniciamos nossa investigação em idos de 1984, quando coordenávamos a interface estadual (RJ) do Programa Salas de Leitura (MEC-FAE). Naquela oportunidade, pudemos constatar a dificuldade docente e discente com a produção textual e mesmo com a leitura. Até a leitura do livro sem texto (como era conhecido o livro-sem-legenda) era algo da mais alta complexidade, chegando a ser devolvido à Secretaria Estadual de Educação como sendo livro defeituoso. Logo, o poder comunicativo das imagens figurativas não era percebido, e o livro-sem-legenda era algo ora considerado como incompleto (defeituoso) ora como material destinado às turmas do pré-primário (anteriores ao processo de letramento).

Daquela experiência nasceu um projeto de pesquisa que se materializou em tese de doutoramento (SIMÕES, 1994) em Letras Vernáculas (área maior: língua portuguesa, 1994 -UFRJ), no qual pudemos demonstrar a eficiência da leitura da imagem enquanto suporte para a leitura/produção do texto verbal.

Após tal constatação, adentramos o universo semiótico - base daquela pesquisa bem sucedida - e hoje tentamos desenvolver estratégias metodológicas que auxiliem a melhoria da qualidade das aulas de português e das demais disciplinas.

 
Estágio II
Com o advento da cibernética, viu-se então que o texto é pluridimensional, e o conhecimento dos signos (em sua variedade) se impõe. A intuição inicial e empírica de que se estudar o não-verbal poderia dar suportes para a compreensão do verbal vem evoluindo em premissa técnico-científica, porque encontra bases firmes na investigação semiótica dos textos. Observados como objetos sensíveis, os textos são passíveis de decomposição em unidades sígnicas (ou signos) de natureza variada e que interagem na produção do significado e do sentido veiculados pelos textos. Portanto, a investigação dos signos em suas relações com o objeto-referente, com o raciocínio fundante ou com o ambiente sociocultural em que se insere vai subsidiar uma possível compreensão mais ampla das dificuldades extragramaticais que atravessam o processo de produção textual e de leitura.

Problemas detectáveis na produção discente indicam que há necessidade de reverem-se os métodos de ensino, por conseguinte recorrer a áreas de interface técnica ou teórica. E aqui se mostra a Semiótica de Peirce como instrumental indispensável para a compreensão da leitura de mundo representada nos textos produzidos pelos escolares. A leitura de mundo é, em última análise, a interpretação dos fenômenos que circundam o intérprete. Tal leitura resulta em textos derivados de combinações e misturas ecléticas e heterodoxas que demandam um conhecimento cada vez mais ampliado dos sistemas sígnicos, dos códigos, das linguagens que circulam na contemporaneidade.

O baixo nível de compreensão leitora e a deficitária capacidade de produção de textos exigem uma revisão do processo de percepção, captação e reflexão sígnica para que a operação com estes se faça produtiva e eficiente. Daí a advém a importância de apetrecharem-se os professores com a teoria semiótica - sobretudo da de Peirce -, pois, por meio desta, torna-se possível a compreensão dos mecanismos mentais de recepção, processamento e interpretação dos fenômenos sensíveis à mente humana. A semiótica de inspiração peirceana ressurge como interface teórico-metodológica como suporte para a melhoria da qualidade não só do ensino da língua, mas, sobretudo, do desenvolvimento da metodologia da ciência. E quando se trata do processo de produção textual, estar-se-á contribuindo para o aperfeiçoamento do relato dos resultados produzidos/obtidos pelos avanços tecnológicos e científicos.

 
Semiótica como ciência
O fundamento filosófico da Semiótica de Peirce viabiliza a reflexão sobre os esquemas de cognição. Segundo o estudioso, não há pensamento sem signos, ou seja, sem uma interpretação, a qual se faz por meio da produção/estruturação sígnica. Adiante descobriu que mesmo na matemática não é possível desenvolver raciocínios exclusivamente por meio de símbolos. Para ele, os raciocínios se produzem por meio de uma mistura de signos; por isso, entender o pensamento demanda o conhecimento da variedade sígnica e das suas misturas possíveis, assim como o nascimento e a evolução dos signos.

Uma vez descoberta de que o universo se constrói mediante duas ações fundamentais - ação diádica ou bruta e ação triádica ou inteligente ou sígnica - é reforçada a sua visão tridimensional do phaneron (designação peirceana para fenômeno considerado como qualquer coisa que aparece de qualquer modo à mente - cf. CP 8.297)

A taxionomia triádica (primeiridade, secundidade, terceiridade) de classificação do signo e a definição da semiose dão maior visibilidade ao fenômeno da leitura e compreensão de textos (verbais ou não). E nessa mesma ótica, a compreensão dos atos de descrever, narrar e dissertar se mostram mais facilmente inteligíveis, uma vez que a descrição se atém à apresentação das qualidades (primeiridade) dos objetos sensíveis; a narração opera com as relações (secundidade) produzidas no tempo e no espaço; e a dissertação se produz a partir de conclusões, generalizações (terceiridade).

A revisão do percurso mental associado ao dos sentidos (tato, visão, audição, etc.) na produção de textos é uma das grandes contribuições da semiótica. Recorrendo às matrizes sonora, visual e verbal como originárias da linguagem e do pensamento, torna-se possível compreender a evolução dos processos comunicativos humanos, desde a era primária: os grunhidos, as garatujas e posteriormente os ideogramas. Com tais recursos, o homem deu início à produção de meios para a representação de suas idéias, sensações, impressões, viabilizando a intercomunicação (considerando-se que a manifestação pura, de natureza monológica, não existe em situações ditas normais), de si para com os outros.

 
A Semiótica como método ou moldura teórica interdisciplinar
A atitude científica é uma das grandes descobertas intelectuais humanas que precisa ser disseminada no âmbito escolar. A investigação científica deve ser demonstrada como fonte de desenvolvimento cognoscitivo. Precisa ser associada à atitude filosófica, por meio da qual o homem será capaz de pôr-se em atitude de admiração diante do mundo.

Por intermédio da descrição dos fatos e fenômenos que se torna possível a reflexão sobre o irrefletido. A produção sígnica é a plataforma que dá ao homem os meios indispensáveis à organização do pensamento e à sua conversão em linguagens e códigos. Por esses meios, o irrefletido torna-se signo e sobre ele torna-se possível projetarem-se os holofotes da especulação científica (ou técnica) com vistas a investigarem-se-lhes a estruturação interna e a situação externa (no tempo e no espaço), dando-lhe significado e permitindo a depreensão de sentido por parte de cada intérprete (leitor, investigador).

Com base no tripé da primeiridade, secundidade e terceiridade construído por Peirce, pode-se deduzir que a representação do efeito produzido pelo contato entre phaneron e mente se faz iconicamente, pela descrição das qualidades do "objeto-sensível" (entre aspas por se tratar de algo ainda inefável); indicialmente pelo relato de suas relações têmporo-espaciais com outros objetos sensíveis reconhecidos e simbolicamente, por meio do discurso sobre o objeto: signo terceiro que envolve juízo de valor do intérprete sobre o objeto sensível representado. Logo, lançar mão da Semiótica como moldura metodológica para uma investigação é traçar um esquema tridimensional para a interpretação dos signos que se construírem como objetos de análise, dando-lhe ao pesquisador, no mínimo, três estágios de testagem de suas hipóteses e de projeção de suas conclusões.

 A ciência é construída sobre o mundo vivido e ela só pode ser vista enquanto expressão segunda resultante da experiência do mundo. É um ato de secundidade que nos leva à caracterização indicial da ciência (índice - tipo de signo que se apresenta em relação de contigüidade com o objeto a que representa), pela qual o homem se conduz de uma para outra descoberta, como se perseguisse pistas demarcadas pelas coisas do mundo.

O mundo está aí antes de qualquer análise que se possa fazer dele, e sua construção é multidimensional, logo: interdisciplinar por natureza. E a Semiótica, considerada como uma ciência da significação (ou semiose), é originalmente plural, multi-, inter- e trans- disciplinar.

Diferentemente do enfoque semiológico (que se ocupa dos signos lingüísticos e se torna anexa à ciência lingüística), a Semiótica abarca o estudo dos signos em geral. Portanto, o som, a imagem, o balé, a pintura, o desenho, o escrito, o falado, etc., tudo é matéria semiótica. Assim sendo, no espaço escolar, a semiótica recobre todas as disciplinas e pode, portanto, por elas ser utilizada como moldura teórico-metodológica, servindo, sobretudo, de nexo de transição entre a disciplina em foco e as que se pretende se lhe relacionar.

Signos e representações na investigação científica
O irrefletido é uma coisa primeira que faz da ciência uma sua representação icônica (ícone - tipo de signo que se apresenta em relação de semelhança com o objeto a que representa). A representação icônica torna possível ao homem operar sobre as coisas e fenômenos analisando-as e descrevendo-as por meio de atos de linguagem.

A metodologia da ciência, associada à Semiótica, faz com que o estudante passe a conhecer, organizadamente, os esquemas disponíveis para o raciocínio humano e, a partir deles, iniciar a contemplação do seu mundo, com vistas a indagar-se sobre suas origens e seu destino. Quem sou? De onde vim? Para onde vou?

Na produção de pesquisa: a Semiótica pode fornecer instrumentos que auxiliarão a definição do objeto, do foco de abordagem e da corrente teórica mais adequada.

No ensino da língua: a Semiótica vai fornecer meios de identificarem-se não só os signos com que se constrói o código utilizado, assim como os esquemas de construção textual, analisando-lhe como imagem, diagrama ou metáfora do mundo interpretado.

Na evolução da ciência e dos métodos: a Semiótica e seus esquemas ternários relativos à primeiridade (percepção); secundidade (reação) e terceiridade (representação) vai dar suporte à formulação do raciocínio com aportes lógicos, filosóficos e fisiológicos, por meio dos quais a satisfação da curiosidade humana poderá atingir altos patamares, sem lesar a capacidade intelectiva do ser pensante por meio de explicações dogmáticas ou místicas.

Com base no exposto, temos tentado percorrer - em sentido duplo, na direção do processo enunciativo e na das relações emergente do próprio texto em leitura - a tessitura textual com vistas a levantar dados que viabilizem não só o entendimento dos mecanismos gramaticais (das relações sígnicas imediatas), mas também dos mecanismos mentais (de seleção e produção) que engendraram esta e não outra forma para veicular um dado sentido.

De posse de um instrumental dessa ordem, supomos se torne mais fácil conduzir os enunciadores incipientes à eficiência enunciativa e assim, o encorajamento docente e discente resulte em maior disposição para a lide cotidiana com o ensino-aprendizagem do vernáculo não apenas como um conjunto de normas a serem memorizadas, mas como um sistema lingüístico bastante à expressão de nossos sentimentos, idéias e raciocínios.

 

Referências bibliográficas:
GREIMAS, J. A & J. COURTÉS. Dicionário de Semiótica. São Paulo: Cultrix, s/d

NÖTH, Winfried. Handbook of Semiotics. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 1995a

-.-.-.-.-.- Panorama da semiótica: de Platão a Peirce, São Paulo: ANNABLUME, 1995b

SIMÕES, Darcilia. O livro-sem-legenda e a redação. Edição Acadêmica. Tese de Doutoramento. Rio de Janeiro: UFRJ, 1994.

-.-.-.-.-.- "Semiótica na comunicação lingüística: um instrumental indispensável". In AZEREDO, José Carlos (org.) Letras & comunicação: uma parceria no ensino de língua portuguesa. Petrópolis: Vozes, 2001. [p. 86-100]

SANTAELLA, Lucia. (1995) Teoria geral dos signos. Semiose e autogeração. 2a. ed. São Paulo: Ática.

-.-.-.-.-.- (1996) Produção de linguagem e ideologia. 2a. ed. rev. e aum. São Paulo: Cortez.

-.-.-.-.-.- Matrizes da linguagem e pensamento. Sonora, visual, verbal. São Paulo: FAPESP/Iluminuras. 2001.