Quando as pessoas se amam e querem se amar, selam um
pacto: dormir juntas.
E quando se fala "dormir juntos" o sentido é
duplo: significa primeiro amar acordado em plena
vigília da carne, mas, depois, na lassidão
do pós-gozo, deixar os corpos lado a lado, à deriva,
dormindo, talvez.
Na verdade, os amantes,quando são amantes mesmo,
mesmo enquanto dormem se amam.
Agora ouço esses versos de Aragón cantados
por Ferat:
"Durante o tempo que você quiser
Nós dormiremos juntos".
E penso. É um projeto de vida, dormir juntos,
continuamente.
A mesma ambigüidade: dormir/amar juntos, dormir/acordar
juntos, ou então, dormir/morrer de
amor juntos.
Deve ser por causa disto que os franceses chamam
o orgasmo de "pequena morte".
Deve ser por isto que os amantes julgam poder continuar
amando mesmo através da morte,
como Inês de Castro e D. Pedro, que foram sepultados
um diante do outro,para que no dia do
reencontro um seja o primeiro que o outro veja. Amor:
um projeto de vida, um projeto de morte.
Se numa noite dessas o vento da insônia soprar
em suas frestas,repare no corpo dormindo despojado ao seu lado.
Ver o outro dormir é negócio de muita
responsabilidade.
Mais que ver as águas de um rio represado gerando
uma usina de sonhos,é ver uma semente na
noite pedindo um guardião.
Pode ser banal, mas é isto: amar é ser
o guardião do sonho alheio.
Os surrealistas diziam: o poeta enquanto dorme trabalha.
Pois os amantes enquanto dormem, se amam.
Se amam inconscientemente,quando seus desejos enlaçam
raízes e seivas.
O pé de um toca o pé do outro,a
mão espalmada corre sobre o lençol e toca o corpo alheio
e,
dormindo, se abraçam animados.
Quando isso ocorre, pode ter vários significados.
Talvez um tenha lançado um apelo silencioso
ao outro:
"Ajude-me a atravessar esse sonho", ou:
"Venha, sonhe esse sonho comigo, é bonito demais".
E o outro, às vezes, sem se mexer, parte em
seu socorro. É que certos sonhos,sobretudo os de quem ama, não
cabe num só corpo. Transbordam os poros da noite e pedem
cumplicidade.
E se há um pesadelo, aí um se agarra
ao tronco do outro na crispação do instante, e o corpo do
parceiro é bóia na escuridão.
Por isto, no ritual do casamento,quando o sacerdote
indaga se os que se amam sabem que terão que se socorrer na saúde
e na doença, na opulência e na miséria etc... deveria
se inserir
um tópico a mais e advertir:
... amar é ser cúmplice do sonho alheio.
Passar a metade da vida dormindo ao lado do outro.
Há pessoas que vivem 25 anos - bodas de prata,
50 anos - bodas de ouro,75 anos - bodas de
diamante - ao lado do outro, e não sabem com
que o outro sonha.
E há quem passe uma tarde, uma noite ou uma
temporada ao lado de um corpo e sabe seus sonhos para sempre.
Engana-se quem escuta o silêncio no quarto dos
queamam.
Estranhos rumores percorrem o sonho alheio.
Não é o rugir do tigre pelas brenhas.
Não é o bater das ondas na enseada.
Nem os pássaros perfurando a madrugada.
São os sonhos dos amantes em plena elaboração.
E se numa noite dessas o vento da insônia de
novo soprar em suas frestas,olhe pela janela os muitos apartamentos onde
pulsam dormindo os amorosos.
Quando se compra um apartamento novo,nas alturas,
alguns compram lunetas e ficam vasculhando a vida alheia.
Mas para ouvir o ruído dos sonhos basta abrir
os ouvidos na escuridão.
Os sonhos pulsam na madrugada.
Era uma vez um chinês que toda vez que sonhava
com sua amada acordava perfumado.
Deve ser por isso que,ainda hoje, o quarto dos amantes
amanhece com um perfume de almíscar,
lavanda e alfazema.
E é comum achar troféus dos sonhos ao
pé da cama de quem ama.
Quando se abre a pálpebra do dia,aí
pode-se ver um unicórnio de ouro e uma coros de rubis.
À noite os sonhos dos amantes se cristalizam
e de dia se liqüefazem em beijos e lágrimas.
Quem ama diz boa-noite como quem abre/fecha a porta
de um jardim.
Não apenas como quem viaja,mas como quem vai
para a colheita.
Quando se ama, acontece de um habitar o sonho do outro,
e fecundá-lo.
Affonso Romano de Sant'Anna